AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL E CRIME CONTINUADO NA JURISPRUDÊNCIA RECENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Actualmente, não há crime continuado tratando-se de infracções criminais contra bens eminentemente pessoais (isto é, bens tutelados no Título I "Dos crimes contra as pessoas", do Livro II "Parte Especial", do Código Penal). Assim, inscrevendo-se a "autodeterminaçao sexual" no sobredito Título I (mais precisamente, na Secção II, do Capítulo V "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual", do Título I, do Livro II, do Código Penal), parece que devemos concluir que a realização plúrima do mesmo ou diversos tipos de crime que tutelam o desenvolvimento da vida sexual das pessoas menores de idade configura um concurso de crimes, mesmo que essa realização seja "executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente" (cfr. art. 30.º, ns.º 2 e 3, CP). Analisemos, porém, mais detalhadamente, a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça anterior à entrada em vigor da Lei n.º 40/2010, de 03 de setembro, que suprime a ressalva segundo a qual ainda que o bem jurídico-penal, concretamente, ofendido seja de natureza eminentemente pessoal poderá verificar-se um crime continuado, tratando-se da mesma vítima (Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro).
No Acórdão do STJ, de 23-01-2008, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, aprecia-se a factualidade seguinte: O arguido, pai da menor T, de 11 anos de idade, aproveitando a ausência da mulher S - que vivia com o marido e os dois filhos de ambos (T e um irmão de 15 anos) em Évora, mas tinha de deslocar-se, por vezes, a Lisboa, para tratar de assuntos do casal, chegando em mais do que uma ocasião a pernoitar naquela cidade -, em data não concretamente apurada, mas durante o Verão de 2006, após ter levado a filha consigo para a cama do casal, "acariciou os seios e a zona genital dela, colocou a mão na zona vulvar e da vagina da menor onde mexeu com os dedos, e, tendo colocado o pénis erecto fora dos calções e afastado as cuecas da menor na zona genital, colocou o seu corpo sobre o corpo da menor e friccionou o pénis que tinha tirado para fora dos calções e a zona genital contra a zona genital dela também fora da roupa, em movimentos oscilatórios do corpo, aí ejaculando, sem penetração genital". Pelo menos em três outras ocasiões, sempre quando a mulher estava ausente em Lisboa, mas em datas, também, não concretamente apuradas, o arguido, no interior da residência, "levantou a blusa da menor e chupou-lhe os seios". Em 1.ª instância, o arguido é condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime, na forma continuada, de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal. Inconformado, o Ministério Público recorre para o STJ, alegando, nas conclusões da respectiva motivação, que não há "in casu" um crime continuado, mas, sim, "um concurso efectivo de dois crimes de abuso sexual de criança agravados" (ponto 5.º, das conclusões). Na resposta a esta questão de direito, o tribunal "ad quem" subscreve a sobredita conclusão do MP, fundamentando-se nas razões seguintes: 1) "o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado"; 2) aquilo que caracteriza a figura de o "crime continuado" é a renovação da resolução criminosa, não a unidade desta. Ora, resulta, notoriamente, dos factos provados "que o arguido agiu determinado por uma única resolução criminosa, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas"; 3) a não resistência da ofendida T não poderá indiciar um qualquer "acordo" entre ela e o arguido, pois terá resultado do ascendente natural que o agente, como pai, tinha sobre a vítima não podendo, consequentemente, atenuar a culpa do condenado; 4) as condutas imputadas ao arguido não podem ser consideradas homogéneas, assumindo a descrita, inicialmente, na matéria de facto "uma gravidade maior do que as restantes"; 5) todavia, também estas últimas não configuram a prática de um crime continuado, uma vez que a homogeneidade (acariciar e chupar os seios da ofendida) "não é condição suficiente da continuação criminosa". Tudo visto, o tribunal de revista decide-se pela existência de um concurso efectivo entre dois crimes, um deles correspondente à conduta mais grave, o segundo aos actos reiterados restantes. Todavia, diz-se que estes outros actos não integram um crime continuado, mas, sim, um "crime de trato sucessivo", que se caracteriza "pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime". É que não se verificando - como acontece no crime continuado - uma culpa diminuída, deverá o respectivo agente responder por uma culpa agravada, "medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude".
Noutro Acórdão posterior do STJ, mais precisamente de 01-10-2008, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Armindo Monteiro, está, também, em causa a problemática de a "continuação criminosa", no âmbito da prática de crimes contra a autodeterminação sexual. Assim, o tribunal colectivo condena o arguido numa pena conjunta de 15 anos de prisão, tendo esta pena sido determinada atendendo às penas, concretamente, aplicadas aos crimes seguintes: 313 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, praticados contra a filha BB, correspondendo a cada um deles a pena de 3 anos de prisão; 504 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, praticados contra a filha BB, correspondendo a cada um deles a pena de 6 anos de prisão; um crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, praticado contra a filha CC, correspondendo-lhe a pena de 3 anos de prisão; 60 crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, ns.º 1 e 2, 73.º, 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), todos do CP, praticados contra a filha CC, correspondendo a cada um deles a pena de 2 anos de prisão. A moldura penal do concurso é, portanto, de 6 a 25 anos de prisão (cfr. art. 77.º, n.º 2, CP), assinalando-se somente por curiosidade que a soma das penas aplicadas equivaleria a 4.086 anos de prisão! Os factos provados são os seguintes: O arguido, casado com DD, é pai das menores BB e CC, nascidas deste casamento e que residem com os pais em casa destes. Entretanto e durante o ano de 1996, EE, prima das filhas do referido casal, tendo à época 9 anos de idade e estando de visita àquelas, é abordada pelo arguido, que se senta no sofá, junto dela e de BB (um ano mais velha), completamente nu e obrigando as duas a mexerem-lhe no pénis, tendo, posteriormente, inserido "a mão no interior das calças de EE fazendo-a deslizar no sentido de tocar a vagina da menor" (pontos 5 a 7, da matéria de facto). Também em data incerta, mas entre os anos de 2000 e 2001, o arguido, após acordar FF, prima das filhas e que esta nessa altura a viver na casa destas, conduz aquela menor de 11 anos de idade à sala, tendo colocado a mão "na perna dela, em contacto directo com a pele, movimentando-a, fazendo-a deslizar para cima e para baixo", após o que "tentou introduzir a mão no interior das cuecas da menor", que o repeliu dirigindo-se para o quarto (pontos 9 a 12, da matéria de facto). Ainda durante o sobredito período, o arguido, no quarto de casal, faz deitar FF na sua cama e retira-lhe todas as peças de roupa, deixando-a completamente nua e massajando-a com creme, "sobretudo na zona das nádegas, forçando a menor a abrir as pernas" (pontos 15 a 18, da matéria de facto). No ano 2000, mas em data não concretamente apurada, o arguido, "aproveitando-se da ausência da sua mulher que se encontrava a trabalhar", tranca-se com a filha BB de 12 anos de idade no quarto de casal e, após a ter despido da cintura para cima, apalpa-lhe todo o corpo, "demorando-se mais tempo na região do peito e órgãos genitais" e forçando-a a manipular-lhe o pénis até ejacular sobre as pernas da menor. Situação idêntica repete-se com periocidade diária, "pelo menos por 312 vezes", até Junho de 2001 (pontos 20 a 22, da matéria de facto). Ainda "em data não concretamente apurada, mas não anterior a Julho de 2001", o arguido despe integralmente BB, então, com 13 anos de idade e introduz o pénis no interior da vagina, "sem preservativo, até ejacular", o que faz sobre as pernas daquela. "Factos de idêntica natureza e com contornos idênticos" ocorrem diariamente, "pelo menos por 504 vezes", também durante os anos de 2002 e 2003, quando a vítima tem já 14 e 15 anos de idade, respectivamente (pontos 23 e 24, da matéria de facto). "Em data não concretamente apurada, mas não anterior a Novembro de 2002" (tendo, portanto, a ofendida 10/11 anos de idade), o arguido, após deitar a filha CC na sua cama, "onde já se encontrava nú", despe-a e começa a acariciar-lhe a vagina, forçando-a ainda a manipular-lhe o pénis e roçando o corpo dele no dela (ponto 29, da matéria de facto). Noutra ocasião, o arguido, "além de lhe acariciar os órgãos genitais e de a forçar a manipular o seu pénis", tenta introduzir este último no ânus de CC, causando-lhe dor. Esta situação repete-se, "pelo menos 60 vezes", até Abril de 2004, altura em que a vítima tem ainda 12 anos de idade (pontos 31 a 33, da matéria de facto). Os comportamentos libidinosos do arguido só cessam após Abril de 2004, data em que se ausenta para o estrangeiro, "não mais regressando a território nacional, designadamente ao contacto com as suas filhas" (ponto 35, da matéria de facto). O arguido interpõe recurso da decisão do tribunal colectivo, sustentando que há um só crime de abuso sexual, na forma continuada. Tese esta que é rejeitada, liminarmente, pelo STJ, argumentando-se: 1) a excepção prevista no n.º 3, do art. 30.º, CP: "(...) salvo tratando-se da mesma vítima" não permite a "interpretação perversa" segundo a qual sendo a ofendida a mesma pessoa e existindo uma violação plúrima de bens, eminentemente, pessoais deve afirmar-se sem mais que estamos perante um crime continuado. Não, só há crime continuado nessas circunstâncias caso se verifiquem, esgotantemente, os pressupostos indicados no n.º 2, do mesmo preceito penal: isto é, violação plúrima do mesmo bem jurídico; execução, essencialmente, homogénea; haver uma mesma situação exterior que sirva de quadro de solicitação à prática do crime; existir uma culpa diminuída do agente, em virtude de uma exigibilidade sensivelmente diminuída; 2) não são circunstâncias exteriores ao arguido que o levam à prática dos crimes que lhe são imputados, mas, sim, a sua própria personalidade libidinosa (razões motivacionais endógenas, portanto); 3) o arguido é pai das vítimas, recaindo, assim, sobre ele um dever especial de tutela e respeito que viola, também; 4) a passividade aparente das vítimas não significa consentimento no sentido de "acordo" tácito, "mas muitas vezes estratégia de sobrevivência" (ponto IX, do Acórdão em análise).
Já em 14-05-2009, o Supremo Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar-se, em sede de recurso, sobre uma situação da vida peculiar: práticas sexuais envolvendo menores que se dedicam à prostituição. Assim e sendo relator o Juiz Conselheiro Dr. Soares Ramos, a matéria de facto - subjacente à questão de direito: "continuação criminosa" sindicada pelo tribunal "ad quem" - é, resumidamente, a seguinte: em Maio de 2003, o arguido AA aborda o menor CC, tendo este 13 anos de idade, no Parque Eduardo VII, que é um local procurado por adultos do sexo masculino para praticarem relações sexuais com crianças e jovens desse mesmo sexo. No interior da viatura pertencente ao arguido, este coloca o pénis de CC na sua boca e chupa-o. A partir dessa vez, AA encontra-se, por outras três ocasiões (mais concretamente, até Dezembro de 2003), com o sobredito menor, tendo em todas elas colocado o pénis de CC na sua boca chupando-o. Todavia, nos referidos quatro contactos "o menor CC, em número indeterminado de vezes" introduz, também, o pénis de AA na sua boca chupando-o e, igualmente, "em número de vezes que não se logrou apurar" o arguido roça o seu pénis no ânus do menor (ponto 56, da matéria de facto). Por intermédio de CC, o arguido AA conhece, em Outubro ou Novembro de 2003, os menores FF e EE, este último de 12 anos de idade, tendo-os levado a todos para a sua residência, onde coloca "em exibição, no aparelho de vídeo, um filme pornográfico, de natureza heterossexual" e, enquanto os três menores assistem ao filme, chupa, na presença de EE, os pénis do CC e do FF (pontos 59 a 65, da matéria de facto). "Em mais quatro ocasiões", AA leva para a sua residência os menores CC, EE e FF e, em todas essas ocasiões, conduz as vítimas à sala, exibe-lhes "filmes pornográficos de natureza heterossexual" e coloca, sucessivamente, os pénis daqueles na sua boca chupando-os, "até os menores por vezes ejacularem" (pontos 66 e 67, da matéria de facto). Em contrapartida dos favores sexuais recebidos, AA entrega a cada um dos três menores entre € 30,00 a € 40,00, levando-os ainda, por vezes, a jantar e oferecendo, também, a cada um deles um telemóvel "a fim de, facilmente, poder contactar com os mesmos" (pontos 70 a 73, da matéria de facto). Em data em concreto não determinada, mas logo após o Natal de 2003, o arguido conhece LL, à data com 13 anos de idade. Não tendo sido bem sucedido da primeira vez, AA consegue, todavia, numa segunda tentativa levar o menor LL para o seu escritório, tendo aí colocado o pénis deste último na sua boca chupando-o. De seguida, entrega-lhe € 20,00. Seguramente em data anterior a Junho de 2004 (quando LL atinge os 14 anos de idade), AA encontra-se, por mais três vezes, com LL, levando-o numa delas para a sua residência, na outra para o mesmo escritório referido acima e tendo na terceira permanecido com o menor no interior da viatura onde se faz transportar. Em todas essas ocasiões, o arguido coloca o pénis da vítima na sua boca chupando-o e entrega-lhe € 20,00 (pontos 98 a 114, da matéria de facto). Face a esta factualidade tanto o tribunal de 1.ª instância como o da Relação imputam ao arguido AA a prática, em concurso efectivo, de 9 crimes de abuso sexual de crianças sendo ofendido o menor CC, 4 crimes de abuso sexual de crianças sendo ofendido o menor EE e 4 crimes de abuso sexual de crianças sendo ofendido o menor LL, todos esses crimes p. e p. pelo art. 172.º, ns.º 1 e 2, CP (antes da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro). Tendo AA sustentado junto do STJ, entre outras coisas, que relativamente a cada um dos ofendidos há um crime continuado de abuso sexual de crianças, e não um concurso efectivo, esta instância judiciária superior vem a dar-lhe razão nessa matéria aduzindo os fundamentos seguintes: não se discutindo - mesmo antes do n.º 3, do art. 30.º, CP, (aditado pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) -, que, tratando-se da violação de bens jurídico-penais, eminentemente, pessoais, há pluraridade de infracções sendo várias as vítimas, já no que se refere a cada ofendido por duas ou mais condutas criminosas lesivas de bens daquela natureza será possível afirmar a continuidade criminosa, desde que se encontrem preenchidos todos os pressupostos previstos no n.º 2, do sobredito artigo. Assim e para além da violação plúrima do mesmo bem jurídico e da homogeneidade na execução (pressupostos estes que se verificam, claramente, "in casu", na medida em que o bem ofendido é sempre o livre desenvolvimento da personalidade sexual de menores mediante a prática pelo arguido dos mesmos actos sexuais, ou seja, a chamada "fellatio"), assume relevância dogmático-legal especial a existência de uma solicitação exógena de tal modo significativa que a culpa do agente resulte consideravelmente diminuída. Neste sentido, o tribunal "ad quem" considera que essa solicitação não existe se a respectiva situação é "procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente". Acontece, porém, que no caso decidendo isto não se verifica; pelo contrário, "estes menores ofereciam os seus favores sexuais em local conhecido da cidade e, desse modo, facilitavam o contacto com os clientes, o que diminui substancialmente a culpa destes, embora, como é óbvio, se mantivesse a ilicitude da conduta punida nos termos da lei" (Recurso do arguido AA / Continuação criminosa, do Acórdão em análise). Portanto, conclui-se que há um crime continuado contra cada uma das vítimas. Vota, entretanto, vencido a respeito desta mesma questão de direito o Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, sustentando que não há "in casu" continuação criminosa, na medida em que o arguido não cedeu a solicitações externas, antes "procurou e organizou as oportunidades propícias para continuar a repetir a conduta ilícita". Existirá, sim, um crime de trato sucessivo, uma vez que a actuação ilícita de AA é dominada por uma mesma resolução criminosa relativamente a cada uma das vítimas: "na verdade, o arguido, ao contactar com os menores, pretendia fazer deles seus parceiros sexuais, mantendo com eles relações desse tipo sempre que lhe aprouvesse". Sendo certo que essa resolução determinada e persistente do agente evidencia, não uma culpa diminuída como é próprio do crime continuado, mas uma culpa agravada, que há de expressar-se na medida da pena aplicada.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça volta a deparar-se com a apreciação de factos que configuram a prática reiterada de um crime sexual contra menores. Trata-se de o Acórdão de 17-09-2014, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Pires da Graça. Resumidamente, aqueles factos são os seguintes: Desde 2009, ano em que a vítima BB tem 12 anos de idade, até 2012, o arguido, que é padrasto de BB, mantém com ela, "quase todas as semanas, relações de cópula completa". Aproveita-se para tanto das "ausências da sua mulher CC, mãe da criança", encontrando-se o arguido, à data dos factos, "numa situação de desemprego de longa duração" e CC ocupada "em trabalhos de limpeza remunerados". O tribunal colectivo condena o arguido, em concurso efectivo, pela prática de 21 crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos arts. 171.º, ns.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP, e 20 crimes de actos sexuais com adolescentes agravados p. e p. pelos arts. 173.º, n.º 2 e 177, n.º 1, al. b), ambos do CP, aplicando-lhe - dentro de uma moldura penal que vai dos 5 aos 25 anos de prisão - a pena única de 9 anos de prisão. Inconformado com esta decisão judicial, o arguido refere nas conclusões da respectiva motivação que deve ser condenado por um crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças agravado. Responde o Ministério Público, sustentando que os factos praticados não são subsumíveis naquela figura, desde logo porque esta pressupõe uma única resolução criminosa quando "a conduta do arguido mostra à evidência que o mesmo em cada actuação renovou o propósito criminoso, estando-se perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores" (ponto 5, das conclusões). Tendo o recurso sido remetido pelo tribunal recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça mediante o fundamento de que visa, exclusivamente, matéria de direito, esta última instância judiciária - na apreciação que faz da questão suscitada pelo recorrente - desenvolve os argumentos seguintes: 1) integrando-se o crime de trato sucessivo na figura mais ampla da unidade criminosa (que inclui, também, o crime continuado), a verdade é que aquele pressupõe uma ficção: "onde se verificam vários crimes ficciona-se que apenas houve um"; 2) a nossa lei penal contrapõe, "insofismavelmente", o crime continuado ao concurso de crimes. Assim, o crime de trato sucessivo "surge como solução claramente 'contra legem' e por isso de rejeitar liminarmente"; 3) a existência "in casu" de resoluções idênticas não nos permite afirmar a respectiva unificação: "de cada vez que se impôs à enteada teve, para o que nos ocupa, de tomar uma daquelas resoluções, tal como o agente que decide esfaquear outrem em dias distintos, assaltar determinada pessoa em várias ocasiões ou violar certo indivíduo em diversas alturas". Portanto, faltará, também, um dos pressupostos de o crime de trato sucessivo que é a verificação de uma única e mesma resolução criminosa; 4) tratando-se da mesma vítima, nada obstará à data dos factos (isto é, antes da Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro) que se conclua pela existência de um crime continuado. Todavia, ainda nesse caso é indispensável o preenchimento esgotante dos pressupostos previstos no n.º 2, art. 30.º, CP, constituindo, assim, uma "interpretação perversa" decidir que a violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduz sem mais à figura juspenal de o crime continuado; 5) não se verifica na situação da vida em análise uma culpa consideravelmente diminuída do arguido, que é o pressuposto-chave de o crime continuado; pelo contrário, "a culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente dessa relação de natureza idêntica à familiar, com a menor e sua mãe, em que era especialmente exigível ao arguido, por virtude da ascendência que tinha sobre a mesma menor com quem privava em termos familiares, que, na ausência da mãe desta, zelasse pela defesa da menor, de forma a dela cuidar e proteger, nomeadamente de quaisquer ataques aos seus direitos fundamentais". O tribunal "ad quem" decide-se, pois, pela improcedência do recurso apresentado, confirmando a imputação ao arguido da prática, em concurso efectivo, dos crimes por que vem condenado.
Concluindo. "Ex vi" art. 4.º, Lei n.º 40/2010, o crime continuado está circunscrito à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente do número de vítimas. É dizer que tratando-se de tipos legais de crime que tutelam bens, eminentemente, pessoais, se um determinado agente realiza por mais de uma vez o respectivo conteúdo está excluída sem mais a sua culpa sensivelmente diminuída, ainda que seja, fundamentalmente, o mesmo o bem violado e ele actue de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior. Devendo, assim, afirmar-se que nessas circunstâncias fácticas há um concurso de crimes, convirá, todavia, precisar melhor qual a espécie de concurso que está em causa. Tendo presente as situações analisadas e decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça que comentámos, verificamos o seguinte: na primeira delas, afirma-se que há um concurso efectivo, mas integram-se vários actos sexuais de relevo na figura de o crime de trato sucessivo (que se caracteriza pela existência de uma culpa agravada, não obstante haver uma só infracção criminal correspondente a uma única resolução criminosa); na segunda, afasta-se, liminarmente, a continuação criminosa confirmando-se a verificação de um concurso efectivo, não apenas por inexistir uma situação exógena conducente a uma prática criminosa continuada, mas, sobretudo, em virtude do arguido revelar uma culpa agravada; na terceira, confirma-se que há um crime continuado relativamente a cada vítima, que resulta, sobretudo, de o arguido se ter aproveitado da "oferta" de serviços sexuais por parte dos ofendidos; na última, é, também, a ausência de uma culpa diminuída que impossibilita a catalogação dos factos como crime continuado, sustentando-se ainda que o crime de trato sucessivo constitui uma solução "contra legem". Estamos, todavia, convencidos que em todas as hipóteses em que o tribunal "ad quem" se decide pela verificação de um concurso efectivo a solução deveria ser outra, sendo certo que após a última alteração à nossa lei penal nunca poderia equacionar-se a existência de um crime continuado. É que, a nível da ilicitude material, prevalece, no decurso da prática pelo mesmo agente dos vários factos, uma homogeneidade tal que nos impede de configurá-los como um concurso efectivo de crimes. Como se sabe, a ilicitude material corresponde à violação através de uma certa e determinada conduta da ordem jurídico-penal como garante da integridade dos bens cuja tutela lhe está confiada. É dizer que nela se materializa, em definitivo, a tipicidade contida na descrição fática da conduta proíbida. Ora, sendo esta última executada no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior e de forma essencialmente homogénea, facilmente se conclui que é um só o desígnio criminoso (melhor, opção criminosa) que preside àquela conduta do agente, independentemente desse desígnio se traduzir num plano, previamente, traçado (dolo conjunto) ou na simples renovação de uma decisão, anteriormente, assumida (dolo continuado) ou até numa multiplicidade de resoluções. Assim, parece-nos que existirá aqui um "ilícito dominante" correspondente à conduta mais grave que integra a concreta actividade criminosa, cuja moldura penal servirá de parâmetro quantitativo à pena aplicada, sem prejuízo de se considerar, também, como factores agravantes todos os restantes actos praticados. Em suma: recuperando a tese defendida por Figueiredo Dias, julgamos que face à lei penal vigente dever-se-á punir o arguido segundo as regras de o concurso de crimes aparente, impuro ou impróprio, respeitando-se, assim, integralmente o princípio jurídico-constitucional "ne bis in idem", nas suas duas vertentes: proibição da dupla valoração e mandado de esgotante apreciação.