ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 22/05/2014
Neste acódão aprecia-se uma situação da vida recorrente nos nossos tribunais, que tem a ver com a prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. É relatora a Juíza Conselheira Doutora Helena Moniz, circunscrevendo-se a questão de direito suscitada no recurso interposto pela a arguida à não suspensão da execução pelo tribunal da Relação da pena de prisão aplicada de 4 anos e 9 meses de prisão. Os factos provados que interessam à dilucidação desta questão são os seguintes:
"Desde data não concretamente apurada, mas anterior a 17 de Janeiro de 2012", a arguida M (recorrente) e S "desenvolveram, mediante um plano previamente elaborado, em conjugação de esforços e divisão de tarefas, uma atividade permanente de cedência a terceiros, mediante contrapartida monetária, para consumo, ou revenda por banda destes, de heroína, cocaína e haxixe, o que vinham fazendo, com regularidade, nesta cidade do Porto" (ponto n.º 1, matéria de facto). "Posteriormente a esta data, os arguidos S, M e MF, em conjugação de esforços e divisão de tarefas, passaram a exercer a atividade de venda direta de produto estupefaciente aos consumidores que os procuravam, a troco de quantias monetárias, sendo que, de acordo com o plano elaborado e entre todos gizado e ao qual aderiram, (...) à arguida M cabia guardar as quantias recebidas com a venda do produto estupefaciente e, de forma esporádica, a venda direta de produto estupefaciente aos consumidores (...)" (ponto n.º 8, matéria de facto). Na execução desse plano, os arguidos MF, M e S, "entre as 08h05 e as 10h34, do dia 29 de Fevereiro de 2012", dirigiram-se para um local próximo da residência dos arguidos S e M, "onde estava guardado o produto estupefaciente, doseado, que iam buscar para efetuar as vendas", tendo procedido "à venda de produto estupefaciente, a troco de quantias não apuradas, a 18 indivíduos cuja identificação não se logrou obter" (pontos ns.º 9 e 10, matéria de facto). "Também no dia 2 de Março de 2012, entre as 08h15 e as 10h50, (...) os arguidos S, M e MF procederam à venda, a troco de quantia não apurada de dinheiro, de produto estupefaciente doseado, a 12 indivíduos, cuja identidade não se logrou apurar (...)" (ponto n.º 11, matéria de facto). Tendo em vista pôr cobro a esta atividade delituosa, os agentes da PSP decidiram interceptar os sobreditos arguidos. Assim, "quando foi interceptada (...), a arguida M tinha na sua posse a quantia de € 95,25 (...), em notas e moedas do Banco Central Europeu, proveniente das vendas já efetuadas por si e pelos arguidos MF e S, que lhe haviam entregado tais quantias" (ponto n.º 14, matéria de facto). "No dia 15 de Março de 2012, entre as 09h40 e as 10h22, (...) os arguidos S e M procederam à venda a troco de dinheiro de produto estupefaciente a 6 indivíduos, cuja identidade não se logrou obter, e ao V e ao J, cocaína, pelo preço de € 10,00" (ponto n.º 15, matéria de facto). "No dia 3 de Maio de 2012, entre as 10h10 e as 12h16, (...) os arguidos S e M procederam à venda, a troco de quantia não apurada, de produto estupefaciente, doseado, a 14 indivíduos, cuja identidade não se logrou apurar" (ponto n.º 17, matéria de facto). Periodicamente, o arguido E, que servia de intermediário na venda de produtos estupefacientes, "era contactado por um outro indivíduo cuja identidade não se logrou obter, que recolhia o dinheiro que este havia efetuado com as vendas e entregava-o aos arguidos S e M que, por sua vez, entregavam ao arguido E as embalagens de produto estupefaciente para este vender" (ponto n.º 19, matéria de facto). Quando, uma vez mais, os agentes da PSP decidiram intervir no sentido de pôr cobro a esta atividade e intercetaram a arguida M, esta "tinha consigo a quantia de € 214,15, em notas e moedas do BCE, resultante das vendas já efetuadas (...)" (ponto n.º 25, matéria de facto). Do relatório social da arguida M, consta, entre outros dados, que ela é mãe de 3 filhos, o último nascido do relacionamento que mantém com o co-arguido S, tendo cumprido, há aproximadamente 15 anos, pena de prisão efectiva pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Todavia, M, tanto à data dos factos como presentemente, continua a integrar com os seus três descendentes o agregado familiar de origem, centrado na respectiva progenitora e cuja situação económica é descrita como remediada. Assim, "a organização do quotidiano da arguida é realizada em função dos cuidados que presta aos descendentes, à sua família de origem e ao exercício da sua atividade de empregada de limpeza, apesar do carácter irregular da mesma". Em jeito de conclusão, o sobredito relatório social sublinha: "Em caso de condenação e se a pena concretamente aplicada o permitir, consideramos que a arguida reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, a qual poderá contribuir para uma verdadeira interiorização do desvalor da sua conduta, sendo fundamental que a mesma diligencie no sentido da sua inserção profissional".
Tendo o tribunal de 1.ª instância aplicado à arguida uma pena de 4 anos e 9 meses de prisão, cuja execução suspende por um período idêntico, sujeito ao regime de prova, a Relação julga procedente o recurso interposto pelo Ministério Público no sentido de a exclusão da referida pena de substituição convertendo, assim, a prisão em sanção efectiva. Agora, o STJ confirma a decisão recorrida argumentando, em súmula, que, não obstante se verificar "in casu" o pressuposto formal de aplicação da pena de suspensão da execução da pena de prisão (cfr. art. 50.º, n.º 1, CP), as particulares exigências de prevenção geral, por um lado, que advêm da prática de um crime, manifestamente, lesivo da sã convivência comunitária e do livre desenvolvimento humano, assim como as necessidades de prevenção especial, por outro, consubstanciadas numa conduta, altamente, ilícita e levada a cabo ao longo de cerca de 4 meses, "e da mesma espécie daquela em que já anteriormente tinha sido condenada", obrigam a um juízo de prognose desfavorável, em termos de não se entender preenchido o pressuposto material de a suspensão da execução: "concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" (cfr. art. 50.º, n.º 1, "in fine", CP).
Somos de opinião contrária, que fundamentamos nas razões seguintes: 1) Atendendo aos factos provados, constata-se: a) nas diversas situações datadas e descritas, as imputações de tráfico de drogas nunca são feitas, directamente, à arguida M, mas, indistintamente, a esta e ao seu companheiro S ou - ainda - a MF; b) no ponto n.º 8, da matéria de facto, diz-se, expressamente: "(...) à arguida M cabia guardar as quantias recebidas com a venda do produto estupefaciente e, de forma esporádica, a venda direta de produto estupefaciente aos consumidores". Aliás e parecendo confirmar esta atribuição de tarefa, sempre que a PSP decide pôr cobro à actividade criminosa interceptando os co-arguidos, M só tem na sua posse dinheiro proveniente das vendas efetuadas, diversamente do co-arguido S, que traz consigo produto estupefaciente. Afirmar-se que à co-autoria basta a adesão a um plano gizado por todos corresponde a um conceito subjetivista desta realidade dogmática, que contraria a teoria de o "domínio do facto", mas, sobretudo, desrespeita o teor literal do art. 26.º, 3.ª alternativa, CP: "(...) tomar parte directa na sua execução". Efectivamente e se, por um lado, a sobredita teoria - que os nossos tribunais sustentam, reiteradamente, informar o conceito de autoria vertido na nossa lei penal - consagra uma concepção restritiva, no sentido que só é autor quem domina o "se" e "como" da realização típica (devendo, nesse sentido e a nosso ver, o autor deter, não apenas o "domínio negativo" - isto é, o domínio conducente à não consumação-, mas, em definitivo, o "domínio positivo" do facto punível, que é o conducente à consumação), por outro, o próprio texto legal sublinha a relevância dogmático-normativa de a vertente objectiva da co-autoria. Portanto, não tendo sido, suficientemente, demonstrada a intervenção directa e pessoal da arguida M na execução do crime de tráfico de estupefacientes, mas somente que lhe cabia guardar o dinheiro proveniente desse tráfico cuja posse é confirmada à data da sua intercepção pela PSP, deveria o tribunal "ad quem" ter procedido à alteração jurídica da respectiva participação nos factos "sub judice" considerando-a autora imediata de um crime de receptação p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1, CP, e não co-autora de um crime de tráfico de droga. Tanto mais que esta revisão de qualificação jurídica assume importância decisiva para a apreciação do recurso interposto por M, inscrevendo-se ainda nos poderes de cognição confiados ao STJ (cfr. art. 434.º, CPP): isto é, trata-se de matéria de direito e não de alteração substancial ou não substancial dos factos no tribunal de recurso, que só pode ter lugar na Relação em qualquer dos casos do art. 431.º CPP; 2) Destarte, a ilicitude da conduta da recorrente resulta, consideravelmente, diminuída e, consequentemente, também as exigências de prevenção, geral e especial. Diminuição essa que deve, inclusivamente, refletir-se na pena de prisão aplicada de 4 anos e 9 meses, na medida em que, sendo a pena abstracta aplicável ao crime de receptação de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias, julgamos adequada uma pena de 3 anos de prisão, cuja severidade se justifica apenas tendo em consideração a condenação anterior da arguida pela prática do crime de tráfico de estupefacientes; 3) Em todo o caso, a execução dessa sanção criminal deve ser suspensa, subordinando o tribunal a aplicação da pena de substituição a um plano de reinserção social (regime de prova). É, aliás, esta a sugestão contida no relatório social e a que fazemos referência acima, parecendo-nos, também, que, desse modo, não apenas se cumpre o pressuposto material previsto no art. 50.º, n.º 1, "in fine", CP, como se atende, convenientemente, ao "critério de escolha da pena" (art. 70.º, CP).