ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 14/05/2014
Neste acórdão relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Oliveira Mendes, constata-se o relevo decisivo que o nosso "tribunal de revista" atribui, reiteradamente, aos critérios de prevenção geral na escolha e/ou determinação da medida da pena, a expensas da finalidade reeducativa ou ressocializadora desta. Diz Eduardo Correia ("La prison, les mesures non-institutionnelles et le projet du Code Pénal Portugais de 1963", em Separata do volume XVI do "Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra" - Estudos "In Memoriam" do Prof. Beleza dos Santos, Coimbra, 1965, pp. 37 e s.): "Mais tout en acceptant (...) la nécessité de conserver la peine de prison, il reste clairement établi que (...) elle porte (...) la marque du transitoire, du précaire et du contingent: toute la tendance du futur droit pénal (...) devra se caractériser par l'effort réalisé en vue de substituer intégralement cette forme externe d'exprimer la réprobation éthique et sociale par une autre, ou par d'autres, qui s'adaptent mieux au sens rééducatif que toute peine doit assumer". No caso "sub judice", a arguida pratica, de forma continuada e em concurso efectivo, um crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, ns.º 1, als. a), b) e d), 3 e 4, CP, e um crime de peculato p. e p. pelo art. 375.º, n.º 1, CP. Efectivamente e conforme consta dos factos provados, uma funcionária pública, no exercício do seu cargo de Primeira Ajudante numa Conservatória do Registo Predial e aproveitando-se dos poderes que tinha para movimentar sozinha as respectivas contas bancárias, apropria-se, ilegitimamente e em proveito próprio, de quantias diversas, no montante global de € 42.241,33, quer mencionando números de conta fictícios nas certidões e notas informativas de registo predial, quer procedendo a rasuras de quantias registadas nos livros da Conservatória, quer ainda endossando a terceiro cheques emitidos a favor da Conservatória.
Em 1.ª instância, a referida funcionária é condenada nas penas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão e 2 anos de prisão correspondentes, respectivamente, à prática dos crimes de peculato e falsificação ou contrafacção de documento, sendo-lhe aplicada a pena conjunta de 5 anos e 6 meses de prisão. Tendo recorrido desta decisão judiciária para o STJ, a arguida alega, nas conclusões da respectiva motivação, que "a medida da pena aplicada pelo tribunal 'a quo', quer quanto às penas parcelares, quer quanto à pena unitária, mostra-se superior à medida da culpa e vem restringir a reintegração da recorrente na sociedade". Neste sentido, requer a aplicação de uma pena conjunta não superior a 4 anos e a suspensão da sua execução. Já o Ministério Público junto da 1.ª instância sustenta, na contra-motivação apresentada, que o tribunal recorrido sopesou, na sua decisão, todas as atenuantes invocadas pela arguida - não ter antecedentes criminais, haver restituído cerca de € 23.000,00 dos € 42.000,00 subtraídos, terem decorrido mais de 10 anos sobre os factos, a sua idade actual (57 anos) e encontrar-se aposentada e inserida social e familiarmente - para efeitos das penas parcelares aplicadas, revelando-se a pena conjunta de 5 anos e 6 meses de prisão justa e adequada, na medida em que "é um facto notório que estamos perante criminalidade grave, por desrespeitadora dos bens do Estado, que são de todos nós, e que se trata de conduta reiterada no tempo, pelo que razões de prevenção geral e a necessidade de protecção da vítima são prementes". Acresce que foi ainda ponderado que a reparação forçada do prejuízo, além de parcial, ocorreu muito tarde, sendo certo que a arguida carece de socialização e de uma correcta integração social, apontando nesse sentido o desrespeito manifestado pela ação da justiça, que se concretizou na sua ausência à audiência de julgamento e na impossibilidade de assegurar a sua presença de modo coercivo. Finalmente, o Procurador-Geral Adjunto no tribunal "ad quem" afirma, no parecer que emite, que, em sede das penas parcelares, sobressai imediatamente a elevada ilicitude e culpa da arguida, cuja conduta criminosa perdura ao longo de cerca de 14 meses, "como sobressai igualmente, como factor posterior ao crime, a total ausência de interiorização do mal do crime e o ostensivo desrespeito pela ação da justiça". Sendo, por outro lado, pouco relevantes as circunstâncias que convoca a seu favor: assim e no que respeita ao lapso de tempo entretanto decorrido, esse lapso "é, em grande parte, da sua própria e exclusiva responsabilidade ao ausentar-se para o estrangeiro, não obstante estar sujeita a 'termo de identidade e residência', sem autorização nem comunicação ao tribunal, descurando por completo a sua defesa e a ação da justiça"; a reparação parcial do prejuízo causado ao Estado não partiu de uma atitude espontânea da sua parte, tendo sido "antes determinada pelo próprio decurso dos processos de averiguações e disciplinar que lhe foram movidos"; por fim, o factor "idade" apresenta hoje um significado de menor relevo, "atenta desde logo a actual esperança média de vida da população portuguesa, mormente a feminina". Quanto à pena do concurso, admite-se que possa ser ponderada uma ligeira redução para os 5 anos de prisão. Em todo o caso, sempre prisão efectiva, e "isto porque inquestionáveis exigências de prevenção geral (reforço da consciência jurídica comunitária, no que respeita ao sentimento de segurança face à violação das normas penais) - que não podem, em caso algum, ser descuradas -, sempre imporiam um juízo de prognose desfavorável à possibilidade de escolha de uma pena não privativa da liberdade".
Na apreciação que faz ao presente recurso, o STJ acaba por conceder uma relevância jurídico-penal maior às atenuantes invocadas pela arguida, reduzindo as penas parcelares para 3 anos e 6 meses de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão no que respeita aos crimes de peculato e falsificação de documento, respectivamente. Também a pena conjunta é fixada em 4 anos de prisão, em vez dos 5 anos e 6 meses de prisão determinados pelo tribunal "a quo". Todavia, mantém-se a privação de liberdade, argumentando-se que se está "perante comportamento delituoso que afecta, acentuadamente, o sentimento jurídico comunitário, causando alarme social, consabido que a sociedade, face à degradação a que o Estado de direito vem sendo sujeito por 'interesses' da mais variada ordem, cada vez olha com mais desconfiança as instituições do Estado e o exercício de funções públicas, olhar a que não escapam os tribunais e os que neles operam". Ou seja: num caso de média criminalidade (considerando de pequena e média criminalidade os factos sancionados com pena de prisão não superior a 5 anos), atende-se mais à satisfação de sentimentos jurídicos variáveis da população, tantas vezes artificialmente criados e "alimentados" (designadamente, pelos meios de comunicação social), em detrimento de particulares exigências reeducativas ou de prevenção da reincidência, que a pena de prisão consabidamente não cumpre ou cumpre mal. Assim e a nosso ver, o tribunal "ad quem" deveria ter suspendido a execução da pena de prisão aplicada, sendo certo que essa suspensão seria, necessariamente, acompanhada do regime de prova (cfr. art. 53.º, n.º 3, CP). Regime este que "assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio (...) dos serviços de reinserção social" (art. 53.º, n.º 2, CP). Poder-se-á, todavia, contra-argumentar que, tendo em consideração a idade da arguida e a sua situação pessoal de reformada, as necessidades de reinserção social são pouco significativas. Não nos parece, sobretudo porque o aspecto mais crítico que a situação "sub judice" evidencia é a deficiente interiorização dos valores da ordem jurídica por parte da condenada, que se manifesta no desrespeito perante a ação da justiça (aliás, muito justamente sublinhado nas respectivas alegações pelos ilustres representantes do Ministério Público).
Convém recordar que no artigo 84.º, 1.ª parte, do seu Projecto da Parte Geral, Eduardo Correia adopta já a previsão seguinte: "Na escolha entre várias penas aplicáveis, o tribunal deve preferir as não detentivas às detentivas, sempre que as primeiras permitam preparar convenientemente a personalidade do delinquente para não violar os valores jurídico-criminais". De igual modo, no estudo acima referido (p. 70), o penalista português assevera que "ce n'est d'ailleurs qu'en faisant appel à une gamme étendue de réactions non-institutionnelles (...) que l'on parviendra, même sur le plan éthico-juridique, tel que nous l'entendons, à mettre en oeuvre une pénologie différenciée, répondant réellement au sens du droit criminel moderne".