ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 08-01-2014

28-09-2014 01:22

Tendo sido relator o Juiz Conselheiro Dr. Oliveira Mendes, analisa-se neste acórdão um caso que se traduz na violação plúrima de tipos legais de crime inscritos no Capítulo V, Título I, da Parte Especial, do Código Penal: "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual". Antes do mais, vejamos os factos provados: Na primavera de 2008, tendo a vítima BB 13 anos de idade (nascera em 1995) e sabendo que esta se encontrava sózinha em casa, o arguido, que casara, recentemente, com a mãe daquela (DD), obriga a menor a ter relações sexuais consigo, "agarrando-a pelo braço, (...) introduzindo o seu pénis erecto na vagina dela, e friccionando" (ponto 10, matéria de facto). Noutra ocasião, em data não apurada, mas no decurso de 2009 (quando BB tinha, portanto, 14 anos de idade), tendo o arguido pretendido desde a primeira vez assegurar o silêncio da vítima, dizendo-lhe "que ela iria voltar para o Brasil e voltar para a miséria, e que seria capaz de matar a mãe dela, se DD o confrontasse" (ponto 14, matéria de facto), força-a à prática de sexo oral. Também durante o ano de 2009, o arguido mantém cópula com a ofendida, num armazém de sua propriedade. De outra vez, igualmente em data desconhecida (que se situa, entretanto, entre a primavera de 2008 e o primeiro semestre de 2011), o arguido retorna ao armazém, praticando coito anal com BB. Em 2009 e no quarto que partilhava com DD, o ofensor renova as relações de cópula, que mantivera já, noutras ocasiões, com a vítima. "Em todas as ocasiões descritas, BB afirmou ao arguido que não queria, debateu-se e empurrou o arguido, que sempre a agarrava pelo braço" (ponto 26, matéria de facto). Já no carnaval de 2012 (tinha, portanto, BB 17 anos de idade), "o arguido apalpou a perna de BB" (ponto 30, matéria de facto). CC, filha de DD e dois anos mais nova que a irmã BB (pois, nascera em 1997), é, também, vítima das agressões sexuais do arguido. Assim, este, no primeiro semestre de 2010, mas em datas não determinadas (tendo a ofendida 13 anos de idade), começa "a abraçar de forma apertada CC, e a tocar-lhe nas pernas" (ponto 32, matéria de facto). No mesmo período, o arguido, quando ia acordar CC, toca-lhe, em várias ocasiões, nos seios e nas pernas. Noutra ocasião, mas poucos dias mais tarde, o ofensor, para além de apalpar os seios e as pernas da vítima, obriga CC a manipular-lhe o pénis até ejacular. Doutras três vezes, entre 2010 e 2011, o arguido, de pé, ejacula sobre a barriga da menor, que se encontra deitada. No mesmo intervalo de tempo, mas em data desconhecida, o ofensor, após se ter despido e posicionado sobre a menor, que se mantém vestida, obriga-a a friccionar-lhe o pénis até ejacular. Ainda no decurso de igual período de tempo, o arguido, fechando-se na casa de banho com CC, constrange-a à prática do mesmo ato sexual. Desde esse mesmo período (2010-2011) até ao carnaval de 2012, altura em que a vítima tinha já 15 anos de idade, quando vai buscá-la à vila de Sesimbra, transportando-a no seu carro, o arguido obriga CC a masturbá-lo, tendo tentado de uma das vezes sexo oral, mas logrando CC empurrá-lo, negando-se à prática deste ato. "Por duas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, mas entre 2010 e 2011", o arguido, após levar a vítima para o seu armazém e tendo-a "projectado sobre o colchão que ali se encontrava", esfrega-se "premindo o seu corpo contra o da menor" e obriga-a a friccionar o pénis até ejacular (pontos 48 a 50, matéria de facto). "Desde a primeira vez que agarrou CC e a forçou a masturbá-lo, e com vista a manter as condutas descritas sobre CC e a evitar que esta o denunciasse pelo sucedido, o arguido convenceu-a que se o contrariasse e denunciasse, ela e as suas irmãs iriam ter de regressar ao Brasil, e a ter uma vida miserável, bem como que a sua mãe ia matá-lo, ou ele ia matar a mãe delas" (ponto 51, matéria de facto). No que respeita à terceira vítima II e tendo esta 15 anos de idade (o facto ocorre em julho de 2011, tendo ela nascido em 1996), o arguido durante o percurso de carro até sua casa, acaricia a perna de II acima do joelho, parando porque a ofendida afasta a mão do arguido com a sua. Finalmente, MM, que como II é amiga de CC e tem 15 anos de idade (nascera em 1996), é apalpada pelo arguido, tendo este "feito um gesto desde a parte exterior da coixa, em sentido transversal, até à parte interna do joelho" (ponto 63, matéria de facto).

Face a toda esta factualidade, o tribunal colectivo de 1.ª instância condena o arguido na pena conjunta de 13 anos de prisão, imputando-lhe um crime continuado de violação agravada e um crime continuado de coacção sexual agravada. Após o recurso interposto pelo condenado para o tribunal da Relação e na sequência deste, procede-se à alteração jurídica dos factos, tendo sido aquele considerado autor, em concurso efectivo, de cinco crimes de violação agravada (praticados todos eles contra BB), oito crimes de coacção sexual agravada (praticados todos eles contra CC) e dois crimes de coacção agravada (praticados contra II e MM, respectivamente). Desta última decisão judicial, apela o réu para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, em síntese, nas conclusões: tendo em consideração os factos provados resulta manifesto que a defesa do arguido está prejudicada, na medida em que "nem as alegadas vítimas, nem a própria acusação, referem com precisão o ano, data, hora e lugar das práticas dos actos sexuais, assim como as circunstâncias em que os crimes foram cometidos" (ponto 61, conclusões); por outro lado, não há qualquer razão que permita afirmar "sequer remotamente a verificação de qualquer espécie de violência capaz de configurar ameaça grave ou violação" (ponto 58, conclusões); em terceiro lugar, infere-se dos depoimentos das vítimas que estas "facilitaram a prática dos actos sexuais imputados ao recorrente", tendo ainda este actuado no quadro de uma mesma solicitação exterior, circunstâncias estas que diminuem a sua culpa e conduzem à existência de um crime continuado, não de um concurso de crimes (ponto 86, conclusões); por último, a medida da pena conjunta aplicada - 13 anos de prisão - revela-se "revoltantemente exagerada", designadamente "tratando-se de um sexagenário com um comportamento anterior irrepreensível" e correspondendo, assim, "praticamente a prisão perpétua" (ponto 5, conclusões). Todavia, o tribunal "ad quem", tendo rejeitado, parcialmente, o recurso interposto pelo arguido, circunscreve a sua apreciação e decisão às duas questões seguintes: 1) Qualificação jurídica dos factos. Estando apenas em causa a prática reiterada  de um crime de violação agravada contra BB (as penas concretas aplicadas a cada um dos restantes crimes, não sendo superiores a 5 anos de prisão, obstam a que seja admissível recurso da respectiva decisão proferida, em recurso, pela relação), cujo tipo objectivo integra o uso de violência ou ameaça grave "ex vi" art. 164.º 1, do Código Penal, entende-se que o arguido "sempre que se relacionou sexualmente com a ofendida BB utilizou meios violentos sobre a mesma": agarrando-a pelo braço e ameaçando-a, caso o denunciasse, que ela iria voltar para o Brasil e para a miséria, e que ele seria capaz de matar a mãe dela, se esta o confrontasse. Por outro lado, não há um crime continuado, mas concurso de crimes, desde logo porque o uso constante dos referidos meios de intimidação traduz-se na falta do requisito legal da diminuição sensível da culpa (cfr. art. 30.º 2, "in fine", do Código Penal); 2) Medida das penas singulares e conjunta. Dos 5 crimes de violação praticados contra BB, quatro deles são agravados em virtude da vítima ser menor de 16 anos, um deles por ser menor de 14 anos (respectivamente, art. 177.º 5 e 6, do Código Penal). Assim e no que respeita aos quatro primeiros (cuja pena abstracta varia entre 4 anos e 13 anos e 4 meses de prisão), entende-se reduzir a pena aplicada a cada um deles de 8 para 6 anos e 6 meses de prisão. Todavia, mantem-se intocada a pena conjunta fixada pelas instâncias inferiores de 13 anos de prisão. Neste sentido, argumenta-se: a) a pena conjunta deve ser encontrada entre um limite mínimo de 8 anos de prisão correspondente à "mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" e um limite máximo de 25 anos de prisão, que é a "barreira" legal intransponível apesar da soma das penas concretamente aplicadas ultrapassar, largamente, esse limite (art. 77.º 2, do Código Penal); b) determinando a nossa lei penal que na fixação da pena única sejam "considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente" (art. 77.º 1, do Código Penal), constata-se "in casu" que os factos delituosos individuais estão conexionados entre si, constituindo, assim, a expressão de uma personalidade, fortemente, marcada por uma inclinação para a prática de crimes sexuais; por outro lado, "a violência inerente à prática da maioria dos factos, violência exercida sobre as ofendidas, sem que o arguido tenha interiorizado devidamente o desvalor ético do seu comportamento, evidencia personalidade desconforme para com o direito" ("Medida da pena conjunta", "in fine", do Acórdão do STJ, de 08-01-2014); independentemente das exigências de prevenção, geral e especial, evidenciadas por cada crime praticado e sem violação do princípio da proibição de dupla valoração, o facto ilícito global revela-se, especialmente, ofensivo da paz social, devendo a pena conjunta aplicada manifestar um efeito dissuasor e ressocializador significativo; "a primariedade do arguido, situação comum à maioria esmagadora dos cidadãos, pouco relevo possui" ("Medidas das penas singulares", "in fine", do Acórdão do STJ, de 08-01-2014).

O nosso sistema processual penal apresenta uma estrutura acusatória, integrada, todavia, pelo princípio da investigação: sendo a acusação pública "lato sensu" a definir e fixar o objecto do processo penal (princípio da acusação), cabe à entidade que preside ao julgamento a livre apreciação, mas segundo as regras da experiência, da prova produzida pelos sujeitos processuais, tendo ainda o poder-dever de ordenar "ex officio" a apresentação de outros meios de prova que se lhe afigurem necessários à aplicação do direito ao caso decidendo (princípio da investigação). Neste sentido e apesar da verdade fáctica (logo, também jurídica) absoluta se revelar, processualmente, inalcançável, o juiz está obrigado dentro dos limites que lhe são impostos pelo "thema decidendum" (vinculação temática do tribunal) a servir-se de todos os meios de prova que permitam uma fixação dos factos além de toda a dúvida razoável. Quer-nos parecer, porém, que a descrição da concreta conduta criminosa do arguido apresenta "lacunas" significativas, que relevam para o conteúdo da decisão adoptada. Vejamos: 1) Em relação a cada crime sexual praticado, não há uma data precisa ou sequer aproximada (diz-se, v.g., "desde data não concretamente apurada, mas que se reporta, pelo menos, desde a primavera do ano de 2008 até data indeterminada do primeiro semestre do ano 2011", ponto 7 da matéria de facto, ou "em data que não se logrou precisar, na primavera de 2008", ponto 8 da matéria de facto, ou ainda "em datas que não se logrou apurar, (...) desde a primavera de 2008 e durante o ano subsequente", ponto 15 da matéria de facto); 2) em relação a cada tipo legal de crime, desconhece-se o número exacto de vezes em que é violado pela conduta do agente. Assim, tratando-se de coacção sexual (ofendida CC), diz-se: "em várias ocasiões, (...) quando o arguido ia acordar CC, tocava-lhe nos seios e nas pernas" (ponto 33, matéria de facto); "em datas que não se lograram apurar, (...) o arguido foi buscar CC à vila de Sesimbra, transportando-a de carro, ocasião em que tocava nas mãos e pernas da menor, e obrigava-a a friccionar-lhe o pénis" (ponto 46, matéria de facto). Já no que respeita à violação (ofendida BB), a respectiva descrição fáctica revela-se mais precisa, não obstante se afirmar, v.g., "em pelo menos uma ocasião, (...) o arguido forçou BB a introduzir na boca o seu pénis erecto" (pontos 16 e 17, matéria de facto). Destarte e a partir do exame da matéria de facto, não apenas nos parece arbitrária (isto é, sem suporte fáctico) a quantificação feita pelo tribunal "a quo" (cinco crimes de violação, oito crimes de coacção sexual), como os termos exactos da respectiva agravação resultam incompreensíveis, tendo em consideração que a pena abstracta aplicável varia consoante a idade do menor e esta em virtude da sobredita indefinição temporal nem sempre é determinável: por referência à moldura penal prevista no tipo de crime fundamental, agrava-se de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos, de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se for menor de 16 anos (cfr., respectivamente, art. 177.º 6 e 5, do Código Penal). Por outro lado e tendo em conta o perfil psicológico do arguido, que é, exemplarmente, retratado nos pontos 80 a 100 da matéria de facto, concluimos tratar-se de um sexagenário na plena posse das suas capacidades físicas, que procura afirmar, narcisisticamente, essas suas qualidades vitais, designadamente através de uma actividade sexual desregrada e que tem como parceiras privilegiadas raparigas jovens. Nada nos permite, todavia, imputar-lhe uma natureza violenta e agressiva, afirmando-se, pelo contrário, que "em termos inter-pessoais, o arguido apresenta-se um sujeito sedutor, assumindo uma imagem social influente, valorizando as suas capacidades desportivas e profissionais, numa postura pró-activa e prestável relativamente aos outros" (ponto 89, matéria de facto). Entendemos, pois, que os factos "sub judicio" devem ser, também, valorados à luz desta análise da personalidade do arguido, em ordem a determinar-se nesses factos "segundo as regras da experiência" (cfr. art. 127.º, do Código de Processo Penal) a dimensão real de violência ou ameaça grave inerente à prática dos crimes que lhe são imputados: coacção sexual e violação. São as seguintes as expressões que na factualidade fixada sugerem uma ideia de violência: "Em todas as ocasiões descritas, BB afirmou ao arguido que não queria, debateu-se e empurrou o arguido, que sempre a agarrava pelo braço" (ponto 26, matéria de facto); "agarrou CC e prendeu a mão desta na sua (...) Entretanto, CC empurrava o arguido, mas ele agarrava-a" (pontos 36 e 37, matéria de facto). Quanto à ameaça grave, esta consistirá em o arguido ter convencido as ofendidas que "se o contrariassem e denunciassem iriam ter de regressar ao Brasil, e a ter uma vida miserável, bem como que a sua mãe ia matá-lo, ou ele ia matar a mãe delas" (ponto 51, matéria de facto). Serão estes factos provados, suficientemente, inequívocos para que se possa considerar preenchido o segmento de agressão (física e/ou psíquica) do tipo objectivo do crime de coacção sexual (que nesta parte é comum ao de violação, afirmando-se, assim, este último crime como uma coacção sexual especial)? Pensamos que não. Considerando a compleição atlética do arguido e a particular corporalidade inerente às relações sexuais (sobretudo, se não são - como é o caso - a expressão de um sentimento de afecto mais profundo), julgamos que a violência física manifestada não evidencia a suficiente intensidade e medida que nos permita considerá-la "in casu" como meio idóneo de coacção sexual. Aliás, noutra ocasião, também, documentada na matéria de facto, a ofendida CC consegue contrariar com sucesso a vontade libidinosa "violenta" do arguido: "numa das ocasiões em que o arguido forçou CC a masturbá-lo, o arguido agarrou a cabeça de CC, direccionando-a para o seu pénis erecto, para que esta lhe fizesse sexo oral, mas CC logrou empurrá-lo, enquanto dizia 'não'" (ponto 47, matéria de facto). Relativamente à ameaça, a própria lei penal restringe a sua tipicidade à "ameaça grave"; ora, tendemos a valorar as consequências anunciadas pelo arguido (regresso das ofendidas ao Brasil e/ou confronto trágico mãe/padrasto) mais como uma "atoarda" destinada a incutir temor nas jovens do que como um aviso sério, que seja a expressão de um perigo real para a vida da progenitora. Efectivamente, a própria maneira de ser do arguido referida acima, marcada por uma auto-estima próxima da "gabarolice", conduz-nos a essa conclusão. Acresce que, se a violência/ameaça tivessem sido, verdadeiramente, aflitivas, dificilmente se poderá compreender que a situação narrada nos autos se tenha alastrado por um tão amplo espaço de tempo sem o conhecimento de DD, sobretudo se tivermos presente o convívio íntimo diário entre os protagonistas: padrasto, mãe e filhas. Finalmente, a indefinição temporal e numérica quanto aos actos criminosos praticados é indício de uma certa "rotineiridade" ou "habitualidade", que inscrita num quadro exógeno constante (relação familiar) nos leva a preferir a hipótese legal de crime continuado à de concurso de crimes.

Concluindo. Tendo apenas presente a parte não rejeitada do recurso, constata-se que a ofendida BB é menor de 14 anos à data do crime descrito nos pontos 8 a 13 da matéria de facto, podendo ter ou tendo já 14 ou mais anos de idade, mas menos de 18 anos (as datas concretas das infracções praticadas situam-se num lapso de tempo que vai desde 2008 a 2011), em todas as outras ocasiões. Assim e por se considerar que a conduta do arguido não apresenta a intensidade e medida próprias dos meios "violência" e "ameaça grave" tipificados nos arts. 163.º 1 "Coacção sexual", do Código Penal (e incluídos, também, na descrição típica do crime de violação "ex vi" art. 164.º 1, do mesmo Código), prefere-se integrar a primeira daquelas condutas criminosas na prática do crime p. e p. no art. 171.º 2, CP ("Abuso sexual de crianças", qualificado), subsumindo-se as restantes no tipo legal de crime do art. 172.º 1, CP: isto é, o arguido pratica nestas outras situações um crime de "abuso sexual de menores dependentes", uma vez que a vítima está confiada de facto à assistência do padrasto. Outrossim, entende-se que tais factos configuram a verificação de um crime continuado: o agente aproveita-se da relação de intimidade criada pelo vínculo familiar para cometer, reiteradamente, contra a enteada BB um crime sexual (convém sublinhar que à data dos factos o art. 30.º 3, CP, admite a figura de o crime continuado mesmo que o bem jurídico concretamente tutelado seja de natureza eminentemente pessoal, desde que se trate da mesma vítima). Todavia, essa prática reiterada só poderá assumir aquela qualificação jurídico-penal caso evidencie uma culpa consideravelmente diminuída do ofensor (cfr. art. 30.º 2, "in fine", CP). Parece-nos que, sob este aspecto que se revela decisivo, o conceito de Eduardo Correia de "culpa na formação da personalidade" não contribui - antes, pelo contrário - para a resolução adequada do problema: a culpa (ainda que entendida em sentido pessoal-normativo) diz respeito ao concreto facto individual praticado, esgotando-se aí. Assim sendo, os factos provados sugerem que a conduta inicial do agente evidencia uma particular resolução criminosa ("durante estes factos, BB afirmou que não queria, debateu-se e empurrou o arguido que a agarrava", ponto 11 da matéria de facto) cuja intensidade dolosa se atenua, progressivamente, nas vezes seguintes ( em nenhuma delas  se faz referência à resistência física oferecida pela vítima, dizendo-se apenas que o arguido "forçou" ou manteve BB "agarrada pelo braço", pontos 17, 20 e 25 da matéria de facto), por certo em virtude da sobredita proximidade relacional entre agressor e ofendida. Por outro lado e, agora, em sede de medida da pena global aplicada, sustentamos que a respectiva determinação deve assentar na seguinte configuração jurídica: 1) no que respeita à vítima BB, o arguido pratica um crime de "abuso sexual de crianças" agravado (arts. 171.º 2 e 177.º 1 b), ambos do Código Penal) a que se segue um crime de "abuso sexual de menores dependentes", também, agravado (arts. 172.º 1 e 177.º 1 b), ambos do Código Penal). Há, todavia, e como dissemos já, uma relação de continuidade entre todos os factos, não obstando a tal continuidade a circunstância desses factos serem recondutíveis a tipos legais de crime distintos: há uma unidade de sentido de ilicitude que lhes é dada pela violação do mesmo bem jurídico-penal (autodeterminação sexual) e é compatível com uma pluralidade de concretas resoluções criminosas; 2) tratando-se de CC, é a mesma vítima, por razões idênticas às expostas acima, de um crime continuado agravado de "abuso sexual de crianças" (arts. 171.º 1 e 177.º 1 b), ambos do Código Penal); 3) finalmente e no que concerne, respectivamente, às vítimas II e MM, tendo ambas 15 anos de idade à data dos factos, ainda que se considere que acariciar a perna configura um "ato sexual de relevo" devemos decidir-nos pela não aplicação do art. 173.º 1, do Código Penal ("Atos sexuais com adolescentes"), em virtude de o arguido não ter abusado da inexperiência das ofendidas, seduzindo-as. Efectivamente, estas reagiram de imediato àquele ato: "II afastou a mão do arguido com a sua" (ponto 58, matéria de facto) e "MM dirigiu-lhe a expressão 'tira a mão de mim'", afastando-se "apressadamente" do local (ponto 64, matéria de facto). Portanto e existindo "ex vi" art. 30.º 3, do Código Penal, um concurso efectivo entre os crimes praticados, respectivamente, contra BB e CC, no caso desta última a medida da pena deve ser encontrada dentro da moldura de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão (agravamento de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, da pena prevista no art. 171.º 1, do Código Penal), e no que respeita a BB tendo por referência a pena abstracta de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão (agravamento de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, da pena prevista no art. 171.º 2, do Código Penal). De acordo com as regras especiais da punição do concurso (art. 77.º 2, do Código Penal), importa antes do mais determinar as penas concretamente aplicadas a cada crime. Assim e no que respeita a BB, parece-nos que o comportamento do arguido descrito nos pontos 8 a 13 da matéria de facto (que respeita à primeira cópula praticada com a ofendida, tendo esta oferecido resistência) corresponde  "à conduta mais grave que integra a continuação" (cfr. art. 79.º 1, do Código Penal). Posto o que e dentro da moldura penal agravada que lhe é aplicável e referenciámos acima de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão, entende-se que a pena de 8 anos de prisão cumpre os critérios gerais previstos no art. 71.º, do Código Penal, atendendo, também, ao grau elevado de ilicitude e culpa que a concreta conduta do arguido evidencia, sem esquecer, todavia, o seu comportamento impoluto anterior. Quanto à ofendida CC e dentro da pena abstracta supra mencionada de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, julgamos que a pena de 6 anos de prisão é a adequada ao sancionamento da acção criminosa mais grave que integra a continuação (descrita nos pontos 35 a 40 da matéria de facto e que se refere à primeira vez em que o arguido obrigou a vítima a manipular o pénis daquele até ejacular). Sendo, portanto, a moldura penal do concurso de 8 a 14 anos de prisão (cfr. art. 77.º 2, do Código Penal), sustenta-se que o Supremo deveria ter reduzido a pena conjunta confirmada pelo tribunal "a quo", fixando-a em 10 anos de prisão.