ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 08-01-2014
Sendo relator o Juiz Conselheiro Dr. Souto de Moura, aprecia-se e decide-se neste acórdão o recurso interposto pelo arguido da sentença que o condenou, em 1.ª instância, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. no art. 145.º 1 al. b) e 2, do Código Penal, na pena de 9 anos de prisão.
Sumariamente, a factualidade dada como provada é a seguinte: no seguimento de uma discussão com a ex-companheira, que se recusara a ajudar o arguido num serviço de limpeza, este último ataca-a à navalhada, aproveitando a circunstância de a vítima se encontrar de costas voltadas para si a pintar as unhas dos pés, ao mesmo tempo que lhe diz: "hoje tu vais morrer". Todavia, vendo-a desfalecer e a sangrar abundantemente, o arguido pega-lhe ao colo levando-a até ao exterior da residência e solicitando aí ajuda a um vizinho. Ofensor e vítima acabam por ser transportados ao hospital, onde a mulher é tratada de vários ferimentos que lhe causaram perigo para a vida.
Nas conclusões que apresenta, o recorrente questiona, por um lado, a qualificação jurídica dos factos consignada na decisão recorrida e, por outro, a medida da pena fixada pelo tribunal "a quo". Assim e no que respeita àquela qualificação, afirma que a sua conduta não evidencia a especial censurabilidade ou perversidade que lhe é imputada: não tendo sido provado o real conteúdo da discussão entre o arguido e a ofendida, não se pode concluir que o recorrente agiu por "motivo fútil" (cfr. art. 132.º 2 al. e), aplicável "ex vi" art. 145.º 2, ambos do Código Penal); antes de iniciar a agressão o réu "anunciou" a sua intenção criminosa - "agora vais morrer" -, razão pela qual essa agressão não é realizada subreptícia e traiçoeiramente, ou nas palavras da nossa lei penal utilizando "meio insidioso" (cfr. art. 132.º 2 al. i), aplicável "ex vi" art. 145.º 2, ambos do Código Penal). Portanto e tendo o arguido sido absolvido da prática de um crime de homicídio na forma tentada em virtude de haver impedido, voluntariamente, a respectiva consumação, só poderá ser condenado, na pior das hipóteses, por um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. no art. 144.º al. d), do Código Penal. Já no que concerne à medida da pena, alega-se que, sendo a pena abstracta prevista no respectivo tipo legal de crime (isto é, "ofensa à integridade física grave") de 2 a 10 anos, as condições pessoais do agente (é réu primário), a sua conduta anterior (sempre trabalhou, ajudando a família na Ucrânia desde que o pai morreu), mas, sobretudo, o "arrependimento activo" que revelou após ter anavalhado a vítima contribuem, no seu todo, para uma redução significativa das exigências de prevenção especial positiva ou ressocialização, devendo, consequentemente, a pena principal concreta ser fixada no máximo de 5 anos de prisão e suspensa na sua execução, nos termos do art. 50.º, do Código Penal.
Na apreciação que faz deste recurso, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), cujos poderes de cognição se circunscrevem à matéria de direito (sem prejuízo do conhecimento "ex officio" dos vícios previstos no art. 410.º 2, do Código de Processo Penal), considera que os factos dados como provados pelo tribunal colectivo, não apenas confirmam o móbil real do crime (recusa da vítima em ajudar o arguido num serviço de limpeza), como permitem afirmar o carácter inesperado da agressão: "Não é por se estar a discutir com alguém que se tem que prever que esse alguém, sem ser visto, ao agir pelas costas da vítima, a vai atacar com uma navalha na região cervical" (C - APRECIAÇÃO / I - Qualificação jurídica, ponto b.). Por outro lado, não é por se ter obstado, voluntariamente, à consumação do crime de homicídio, que se deve negar a especial censurabilidade dos atos cometidos: a desistência voluntária opera, única e exclusivamente, em relação ao crime tentado, em termos de se constituir numa causa de exclusão pessoal da pena aplicável àquela infracção (cfr. art. 24.º 1, do Código Penal). Finalmente, entende-se que, atendendendo aos critérios de determinação da pena consignados no art. 71.º, do Código Penal, em conjugação com o disposto no art. 40.º 1 e 2, do mesmo diploma legal, as exigências de prevenção geral são significativas, mas "as necessidades de prevenção especial não se mostram prementes" (C - APRECIAÇÃO / II - Medida da pena, ponto c.). Fixa-se, assim, a pena em 6 anos de prisão.
Vejamos: se desconsiderarmos a relevância jurídico-penal da desistência empreendida pelo arguido, este teria cometido - em conformidade com a factualidade assente - dois crimes (abstenhamo-nos, também, das particulares circunstâncias qualificantes): homicídio, na forma tentada, e ofensa à integridade física grave. Todavia, estas infracções estariam em concurso aparente ou impróprio (antiga consução), evidenciando o facto global um sentido de ilícito dominante (tentativa de homicídio) em que se inscreveria a ofensividade adstrita ao crime contra a integridade física. Assim sendo e como ensina Figueiredo Dias, a pena abstracta aplicável seria a correspondente ao homicídio tentado, devendo, todavia, "in casu" operar como limite mínimo a pena menos severa prevista para o ilícito típico dominado, que é superior ao mínimo do ilícito dominante (o chamado "efeito de bloqueio"); ou seja, a pena a fixar deveria ser encontrada dentro de uma moldura de 2 a 10 anos e 8 meses de prisão. Neste sentido e sem prejuízo da proibição jurídico-constitucional de dupla valoração (cfr. art. 29.º 5, da Constituição portuguesa), a circunstância de o agente ter criado com a sua atuação perigo para a vida da vítima constituirá factor de agravação da sanção concreta aplicável. Acontece, porém, que os factos provados não nos permitem duvidar da voluntariedade da desistência do condenado, em termos dessa desistência não dever assumir a relevância excludente que a nossa lei penal lhe atribui (art. 24.º 1, do Código Penal). Efectivamente, o impedimento da consumação dolosa de homicídio é obra do arguido, tendo sido este a desencadear o processo causal que culmina na preservação da vida da vítima. Por outro lado, também nos parece que a matéria de facto apurada confirma a verificação das circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade da ofensa à integridade físicada praticada pelo agente: 1) a recusa de ajuda por parte da ofendida traduz-se, objetivamente, numa contrariedade a que corresponde uma reacção, manifestamente, excessiva do arguido, que age, assim, sob incompreensível emoção violenta (irracionalmente); 2) estando a vítima de costas e dobrada sobre si mesma, cuidando das unhas dos pés, facilmente se conclui que não esperaria a sobredita reacção, que se configura, pois, como um ataque traiçoeiro. Que tanto é dizer que o agente, não apenas actua por "motivo fútil", como se revela, também, "insidioso" na realização dessa sua acção desarrazoada. Posto o que afastada a punibilidade pelo crime de homicídio, na forma tentada, mas considerada, factualmente, provada a ofensa à integridade física grave qualificada, restam-nos apenas duas infracções criminais, a saber: "ofensa à integridade física grave" (art. 144.º, al. d., Código Penal) e "ofensa à integridade física qualificada" (art. 145.º 1, al. b. e 2, Código Penal). Há, porém, entre os respectivos tipos legais uma relação de especialidade, de tal sorte que à concreta situação da vida só é aplicável a "lex specialis", em conformidade com o brocardo jurídico segundo o qual "lex specialis derogat legi generali": ou seja, a norma juspenal sob a epígrafe "ofensa à integridade física qualificada". Chegados aqui e tendo em conta a pena abstracta prevista de 3 a 12 anos de prisão, divergimos da apreciação feita pelo tribunal "ad quem", quando sustenta: "Na verdade, a desistência livre e profícua do arguido, da tentativa de homicídio, foi tomada em conta para efeito de não punibilidade, e por razões de política criminal estrita. O arrependimento ativo ainda não foi valorado ao nível do grau de culpa ou da ilicitude com qualquer repercussão na medida da pena" (C - APRECIAÇÃO / II - Medida da pena, ponto c., "in fine"). Muito pelo contrário, a desistência voluntária esgota toda a sua relevância axiológico-normativa na exclusão da punibilidade do homicídio tentado, sendo, agora, especialmente significativo o grau elevado de ilicitude e culpa que se manifesta na prática de um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, que é apenas mitigado pelas condições de primariedade do réu e a sua conduta anterior ao facto. Destarte e em conclusão, julgamos adequada a pena de prisão de 9 anos fixada pelo tribunal de 1.ª instância, desde logo e decisivamente porque entendemos - ao contrário do STJ - que as necessidades de prevenção especial se mostram prementes.