ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 03/07/2014
Este acórdão, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, traz à colação uma das problemáticas mais difíceis da dogmática penal: a (in)imputabilidade. É a seguinte a matéria de facto dada como provada:
Casado com DD há cerca de trinta anos, o arguido AA é pai de dois filhos nascidos desta relação, ambos maiores de idade, que residem com o casal. À data dos factos, AA, ladrilhador por conta própria, atravessava um período de dificuldades financeiras, estando, também, em conflito com o sócio, seu irmão. Por outro lado, sendo consumidor de bebidas alcoólicas há cerca de 30 anos e apresentando, inclusivamente, um quadro clínico de dependência dessas bebidas, "com dificuldade em reduzir ou suspender o consumo e insuficiência no funcionamento social" (há registo de acusar, em diversas ocasiões, instabilidade psicológica, sendo visto a falar sózinho), eram frequentes nos últimos tempos situações de conflito entre o arguido e os seus familiares (mulher e filhos do casal), derivadas, precisamente, do sobredito consumo excessivo de álcool, associado, nalguns casos, a ausências de AA. Assim, numa dessas ocasiões, o arguido encetou uma discussão com a mulher DD, tendo trancado esta consigo no interior do quarto de dormir, ameaçando-a "que iriam ambos morrer". Após o que "lançou gasolina sobre a cama do casal", pegando fogo a esta com o auxílio de uma colher de pau em chamas, tendo o incêndio se propagado "pelo quarto e pelos corpos do arguido e de DD". Os filhos do casal acorreram em auxílio da mãe, tendo conseguido "de modo não concretamente apurado" arrombar a porta do quarto e retirar DD "colocando-lhe uma toalha molhada no corpo". Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, "DD sofreu queimaduras com uma extensão aproximada de 20% de superfície corporal", tendo durante o internamento hospitalar de cerca de 2 meses feito "pneumonia complicada de sepsis" e apresentando ainda hoje stress pós traumático, perturbações do equilíbrio e lesões não completamente consolidadas, que "foram até ao momento causa directa e necessária de 194 dias de doença todos com igual incapacidade para o trabalho". O arguido AA encontrava-se alcoolizado à data dos factos, "mas ciente das consequências da sua conduta", não tendo demonstrado arrependimento, "nem valoração crítica" dos actos praticados. No relatório pericial psiquiátrico junto aos autos diz-se: "Face aos elementos apurados, somos de parecer que à data da prática dos factos o examinando era capaz de avaliar a ilicitude dos factos, embora a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação se encontrasse diminuída dadas as fragilidades da sua personalidade e a sua situação de dependência, o que, sob o ponto de vista médico-legal, justifica uma diminuição da sua imputabilidade em relação aos factos concretos de que é arguido, caso estes se venham a provar".
Tendo sido condenado em 1.ª instância numa pena de 9 anos e 6 meses de prisão pela prática como autor imediato de um crime tentado de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, ns.º 1 e 2, als. b) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do CP, decisão esta confirmada pelo tribunal da Relação, o arguido AA recorre para o Supremo Tribunal de Justiça afirmando nas conclusões da motivação que "a pena aplicada revela-se demasiado severa". Assim, alega o recorrente que, tendo sido provada a sua dependência crónica de bebidas alcoólicas e encontrar-se o mesmo embriagado à data da prática dos factos, devem considerar-se verificados os requisitos de que a nossa lei penal faz depender a previsão de inimputabilidade (cfr. art. 20.º, n.º 1, CP), "ao que acresce o facto de não se ter colocado intencionalmente nesse estado para executar o desígnio criminoso". No parecer que emite, o Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça afirma, entre outras coisas, que o tribunal não pode deixar de ponderar em desfavor do arguido a particular perigosidade que este revela e se concretiza, quer na existência de um antecedente criminal (condução de veículo em estado de embriaguez), quer na circunstância de não ter assumido uma atitude de arrependimento e valoração crítica da sua conduta, quer ainda na sua provada dependência alcoólica, tudo isto a exigir "alguma agravação das necessidades de prevenção especial, pelo inquestionável perigo de assumpção de comportamentos semelhantes em situações similares que se lhe possam voltar a deparar". Já o STJ baseia-se no relatório pericial a que nos referimos acima para afastar a aplicação "in casu" do art. 20.º, n.º 1, CP: "A capacidade de autodeterminação (...) estaria diminuída, mas não anulada, de forma que a imputabilidade penal não pode ser afastada". Não tendo, também, a concepção tradicional de "imputabilidade diminuída", fundada na diminuição da culpa, correspondência na lei penal vigente, as situações da vida subsumíveis no art. 20.º, ns.º 2 e 3, CP, traduzem-se, em verdadeiro rigor, em casos de "inimputabilidade fictícia", cuja verificação fáctica é facultativa ("pode ser declarado inimputável..."). Neste sentido, o tribunal "ad quem" sustenta que "as qualidades pessoais" do arguido, reveladas nos factos "sub judice", são especialmente desvaliosas e demonstrativas de uma "culpa agravada". A este respeito, afirma-se que o recorrente evidencia "uma enorme insensibilidade perante a vida humana e uma crueldade notoriamente acima da 'normalidade'", não assumindo "o alcoolismo, se influiu na prática do crime, (...) qualquer efeito desagravante da culpa". Em conclusão, nega provimento ao recurso, confirmando a pena de prisão fixada pelas instâncias inferiores.
De acordo com a lei penal em vigor, a pena justifica-se tendo em consideração, por um lado, a preservação ou tutela de bens jurídicos e, por outro, a recuperação social do delinquente (cfr. art. 40.º, n.º 1, CP). Neste quadro legal, ideograficamente, fundado em critérios funcionalistas ou de utilidade social, a culpa, não sendo embora fundamento da pena, afirma-se como seu pressuposto e limite (cfr. art. 40.º, n.º 2, CP). Há, todavia, certos Autores que sustentam um conceito de culpa que obedece àqueles mesmos critérios funcionalistas, vendo nela somente a violação por parte da pessoa do agente de o dever de agir em conformidade com as exigências da ordem jurídico-penal vigente. Concepção esta que, a nosso ver, se concilia, dificilmente, com o sentido ético que deve informar o conteúdo da culpa e que deriva do respeito, jurídico-constitucionalmente, devido à dignidade da pessoa humana. Efectivamente,o Homem não pode ser reduzido à sua dimensão social ou política ("homo socialis"), uma vez que apenas como "homo singularis" se revela em toda a sua integridade, física e moral. Dito de outro modo: o Homem em si mesmo é anterior ao concreto Estado cuja população integra, estando ainda este último vinculado a respeitá-lo na particular superioridade ética que essa anterioridade ontológica encerra: "une vie ne vaut rien, mais rien ne vaut une vie", diz - e bem - André Malraux. Destarte, fundar, por um lado, a culpa jurídico-penal na eminente dignidade da pessoa humana e descrevê-la, materialmente, por outro, como a "violação pelo homem do dever de conformar a sua existência por forma tal que, na sua actuação na vida, não lese ou ponha em perigo bens jurídico-penais" (FIGUEIREDO DIAS I 2007, 524) constitui-se, no plano de o "ser-pessoa", numa antinomia, tal como é aporética, no plano de a "acção humana", a tese de o "livre-arbítrio": na sua particular essencialidade ético-existencial, a dignidade humana antecede o Estado que se limita a reconhecê-la, contrariamente à generalidade de os bens jurídico-penais (máxime, os "supra-individuais" ou "colectivos") que são criações do legislador ordinário. Parece-nos, pois, que a culpa em direito penal consistirá apenas na assumpção consciente pela pessoa do agente de o especial desvalor da acção típica e ilícita (através da culpa, afirmo-me na acção). Entretanto e porque está em causa uma apreciação subjectiva (isto é, centrada na pessoa do agente) do ilícito típico praticado, essa apreciação terá de assentar na presunção segundo a qual o agente poderia não ter assumido a situação. Presunção esta que subjaz à asserção fáctica seguinte, reiteradamente confirmada pelos nossos tribunais: "Agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta". Em todo o caso, o "prius" é sempre o facto, entendido este como "acção final típicamente ilícita". Aquela presunção é, todavia, ilidível ("presunção iuris tantum"), seja por inimputabilidade, seja por inexigibilidade. Deixando de parte as hipóteses legais de inexigibilidade (que não interessam na situação em análise), consideraremos apenas as de "inimputabilidade". Uma delas, porém, também não se aplica "in casu": a menoridade penal, prevista no art. 19.º, CP. Resta-nos, assim, a "inimputabilidade em razão de anomalia psíquica", art. 20.º, CP. Na linha do que afirmámos antes, esta inimputabilidade verifica-se quando, em razão de uma anomalia psíquica, a pessoa do agente está incapacitada, "no momento da prática do facto", de assumir como seu o particular desvalor de uma acção, juridico-penalmente, proíbida, seja porque não compreende esse desvalor, seja porque se encontra privada da força anímica que lhe permitiria agir em conformidade. Assim e ainda que a consequência objectiva de a deformação psíquica em causa consista na "incompreensibilidade do facto como facto do agente" (FIGUEIREDO DIAS I 2007, 570), o critério psíquico-normativo que nos possibilita decidir sobre a verificação ou não desta causa de exclusão da culpa é subjectivo, porque centrado na pessoa do agente na situação. Ora, tendo em consideração os factos provados, parece-nos que devemos concluir que a percepção assumida pelo arguido dos actos praticados traduz-se em ver neles a expressão de uma "auto-mutilação pelo fogo" a dois, incluindo aí a própria mulher com quem é casado há cerca de 30 anos (sendo este, também, o tempo de consumo abusivo de bebidas alcoólicas), havendo, assim, uma incapacidade em avaliar a concreta ilicitude do facto praticado. Atente-se, também, que se dá como provado não ter o arguido demonstrado "arrependimento nem valoração crítica da sua conduta", circunstância esta que pode encontrar o seu fundamento biopsicológico no estado delirante de AA e se concilia mal com a afirmação de que o mesmo estava "ciente das consequências da sua conduta, agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta". Aliás, o próprio declara "apenas se recordar que no dia dos factos saiu cedo de casa, por volta das sete horas, começou logo a beber (...)". Não se poderá, todavia, sustentar que há "in casu" somente uma "imputabilidade diminuída" ou, preferentemente, uma "actio libera in causa"? A favor da primeira hipótese, poder-se-á convocar o relatório pericial referido acima, designadamente quando aí se afirma que, tendo o arguido à data da prática dos factos a sua capacidade de se determinar de acordo com a avaliação de ilicitude dos mesmos diminuída, justifica-se "uma diminuição da sua imputabilidade". Todavia, parece-nos que a situação concreta não é subsumível na previsão do art. 20.º, n.º 2, CP: mesmo que se admitisse a verificação, no momento da prática do facto, dos elementos biológico ("anomalia psíquica grave, não acidental") e psicológico (capacidade de determinação "sensivelmente diminuída"), a verdade é que não se poderá afirmar - como exige o citado preceito legal: "(...) sem que por isso possa ser censurado" - que a falta de domínio evidenciada por AA sobre os efeitos da sua perturbação não lhe é censurável: estando essa apreciação de censurabilidade desprovida da conexão típica que caracteriza os sobreditos elementos, na medida em que releva da personalidade do agente (culpa pelo carácter), e derivando aqueles efeitos perversos de uma embriaguez crónica e, potencialmente, curável, será, ético-juridicamente, exigível que o alcoólatra promova essa cura. Mas poder-se-á concluir, então, que a situação presente deve ser resolvida em conformidade com os princípios gerais sobre a responsabilidade penal, incorrendo o arguido sem mais na prática de um crime de homicídio doloso: "imputabilidade diminuída autoprovocada" (TAIPAS CARVALHO Comentário Conimbricense II 1999, 1118)? Julgamos que esta figura juspenal não corresponde às circunstâncias da concreta situação em análise, uma vez que o estado de AA é de embriaguez crónica e completa: isto é, inimputabilidade completa. Quanto à segunda hipótese ("actio libera in causa"), esta verificar-se-á, desde logo, caso se possa concluir a partir dos factos provados que AA se embriaga no dia dos acontecimentos "sub judicio" para facilitar a execução de o crime de homicídio praticado contra a sua mulher e que decidira já levar a cabo, tendo agido, portanto, "ab initio" com essa intenção precisa (a.l.i.c. pré-ordenada). Assim sendo e "ex vi" art. 20.º, n.º 4, CP, a imputabilidade não é excluída: isto é, a culpa dolosa (dolo directo) deve ser afirmada. Acontece, porém, que a factualidade provada não nos permite subscrever esta hipótese, tanto mais que se demonstra serem "frequentes nos últimos tempos situações de conflito derivadas do excessivo consumo do álcool pelo arguido", sem que dessas situações tenha resultado o cometimento de qualquer delito. Poderá, todavia, verificar-se uma a.l.i.c. com dolo eventual ou negligente caindo os respectivos factos no âmbito de aplicação do art. 295.º, CP, sob a epígrafe "Embriaguez e intoxicação"? Sendo sem dúvida a autocolocação em estado de inimputabilidade censurável a AA (por diversas vezes e após a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, o arguido trava-se de razões com a mulher e os filhos do casal, sendo, portanto, admissível que tenha, ao menos, representado como possível essa consequência), não se poderá, porém, concluir por referência ao concreto ilícito praticado (homícidio) que AA, no momento prévio ao da inimputabilidade, tenha representado aquele facto, conformando-se com a possibilidade da sua verificação (dolo eventual) ou não se conformando com ela (negligência consciente) ou ainda não tenha sequer representado o referido facto como deveria suceder (negligência inconsciente). Sobrará, assim, a hipótese de simples autocolocação censurável em estado de inimputabilidade, que - pelas razões já mencionadas - consideramos verificada "in casu". A este crime corresponde uma pena abstracta de até cinco anos de prisão ou multa até 600 dias, aceitando-se que, designadamente face ao consumo excessivo reiterado (censurável) de alcóol (cfr. art. 71.º, n.º 2, al. e), CP), a medida concreta se situe próximo do limite máximo legal: 4 anos de prisão efectiva, quantitativo que está longe de exceder a pena prevista para a tentativa de homicídio qualificado (cfr. art. 295.º, n.º 2, CP). Entretanto e para além do ilícito típico praticado (que constitui - no que respeita ao crime de autocolocação em estado de inimputabilidade - uma condição objectiva de punibilidade) e da gravidade do mesmo, AA revela uma personalidade perigosa, particularmente violenta (tem "maus vinhos", como diz o povo) e propensa à prática de factos idênticos. Assim, estão preenchidos os pressupostos de que a nossa lei penal faz depender a aplicação de uma medida de segurança detentiva, devendo esta ter uma duração mínima de três anos (cfr. art. 91.º, CP). Em todo o caso e em conformidade com o princípio do vicariato, "a medida de internamento é executada antes da pena de prisão (...) e nesta descontada" (cfr. art. 99.º, n.º 1, CP), assim se dando satisfação às exigências monistas da nossa lei penal, neste caso na execução de sanções criminais.