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Actualmente, não há crime continuado tratando-se de infracções criminais contra bens eminentemente pessoais (isto é, bens tutelados no Título I "Dos crimes contra as pessoas", do Livro II "Parte Especial", do Código Penal). Assim, inscrevendo-se a "autodeterminaçao sexual" no sobredito Título I (mais precisamente, na Secção II, do Capítulo V "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual", do Título I, do Livro II, do Código Penal), parece que devemos concluir que a realização plúrima do mesmo ou diversos tipos de crime que tutelam o desenvolvimento da vida sexual das pessoas menores de idade configura um concurso de crimes, mesmo que essa realização seja "executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente" (cfr. art. 30.º, ns.º 2 e 3, CP). Analisemos, porém, mais detalhadamente, a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça anterior à entrada em vigor da Lei n.º 40/2010, de 03 de setembro, que suprime a ressalva segundo a qual ainda que o bem jurídico-penal, concretamente, ofendido seja de natureza eminentemente pessoal poderá verificar-se um crime continuado, tratando-se da mesma vítima (Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro).
No Acórdão do STJ, de 23-01-2008, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, aprecia-se a factualidade seguinte: O arguido, pai da menor T, de 11 anos de idade, aproveitando a ausência da mulher S - que vivia com o marido e os dois filhos de ambos (T e um irmão de 15 anos) em Évora, mas tinha de deslocar-se, por vezes, a Lisboa, para tratar de assuntos do casal, chegando em mais do que uma ocasião a pernoitar naquela cidade -, em data não concretamente apurada, mas durante o Verão de 2006, após ter levado a filha consigo para a cama do casal, "acariciou os seios e a zona genital dela, colocou a mão na zona vulvar e da vagina da menor onde mexeu com os dedos, e, tendo colocado o pénis erecto fora dos calções e afastado as cuecas da menor na zona genital, colocou o seu corpo sobre o corpo da menor e friccionou o pénis que tinha tirado para fora dos calções e a zona genital contra a zona genital dela também fora da roupa, em movimentos oscilatórios do corpo, aí ejaculando, sem penetração genital". Pelo menos em três outras ocasiões, sempre quando a mulher estava ausente em Lisboa, mas em datas, também, não concretamente apuradas, o arguido, no interior da residência, "levantou a blusa da menor e chupou-lhe os seios". Em 1.ª instância, o arguido é condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime, na forma continuada, de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal. Inconformado, o Ministério Público recorre para o STJ, alegando, nas conclusões da respectiva motivação, que não há "in casu" um crime continuado, mas, sim, "um concurso efectivo de dois crimes de abuso sexual de criança agravados" (ponto 5.º, das conclusões). Na resposta a esta questão de direito, o tribunal "ad quem" subscreve a sobredita conclusão do MP, fundamentando-se nas razões seguintes: 1) "o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado"; 2) aquilo que caracteriza a figura de o "crime continuado" é a renovação da resolução criminosa, não a unidade desta. Ora, resulta, notoriamente, dos factos provados "que o arguido agiu determinado por uma única resolução criminosa, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas"; 3) a não resistência da ofendida T não poderá indiciar um qualquer "acordo" entre ela e o arguido, pois terá resultado do ascendente natural que o agente, como pai, tinha sobre a vítima não podendo, consequentemente, atenuar a culpa do condenado; 4) as condutas imputadas ao arguido não podem ser consideradas homogéneas, assumindo a descrita, inicialmente, na matéria de facto "uma gravidade maior do que as restantes"; 5) todavia, também estas últimas não configuram a prática de um crime continuado, uma vez que a homogeneidade (acariciar e chupar os seios da ofendida) "não é condição suficiente da continuação criminosa". Tudo visto, o tribunal de revista decide-se pela existência de um concurso efectivo entre dois crimes, um deles correspondente à conduta mais grave, o segundo aos actos reiterados restantes. Todavia, diz-se que estes outros actos não integram um crime continuado, mas, sim, um "crime de trato sucessivo", que se caracteriza "pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime". É que não se verificando - como acontece no crime continuado - uma culpa diminuída, deverá o respectivo agente responder por uma culpa agravada, "medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude".
Noutro Acórdão posterior do STJ, mais precisamente de 01-10-2008, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Armindo Monteiro, está, também, em causa a problemática de a "continuação criminosa", no âmbito da prática de crimes contra a autodeterminação sexual. Assim, o tribunal colectivo condena o arguido numa pena conjunta de 15 anos de prisão, tendo esta pena sido determinada atendendo às penas, concretamente, aplicadas aos crimes seguintes: 313 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, praticados contra a filha BB, correspondendo a cada um deles a pena de 3 anos de prisão; 504 crimes de abuso sexual de crianças agravados p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, praticados contra a filha BB, correspondendo a cada um deles a pena de 6 anos de prisão; um crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, praticado contra a filha CC, correspondendo-lhe a pena de 3 anos de prisão; 60 crimes de abuso sexual de crianças agravados, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, ns.º 1 e 2, 73.º, 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. a), todos do CP, praticados contra a filha CC, correspondendo a cada um deles a pena de 2 anos de prisão. A moldura penal do concurso é, portanto, de 6 a 25 anos de prisão (cfr. art. 77.º, n.º 2, CP), assinalando-se somente por curiosidade que a soma das penas aplicadas equivaleria a 4.086 anos de prisão! Os factos provados são os seguintes: O arguido, casado com DD, é pai das menores BB e CC, nascidas deste casamento e que residem com os pais em casa destes. Entretanto e durante o ano de 1996, EE, prima das filhas do referido casal, tendo à época 9 anos de idade e estando de visita àquelas, é abordada pelo arguido, que se senta no sofá, junto dela e de BB (um ano mais velha), completamente nu e obrigando as duas a mexerem-lhe no pénis, tendo, posteriormente, inserido "a mão no interior das calças de EE fazendo-a deslizar no sentido de tocar a vagina da menor" (pontos 5 a 7, da matéria de facto). Também em data incerta, mas entre os anos de 2000 e 2001, o arguido, após acordar FF, prima das filhas e que esta nessa altura a viver na casa destas, conduz aquela menor de 11 anos de idade à sala, tendo colocado a mão "na perna dela, em contacto directo com a pele, movimentando-a, fazendo-a deslizar para cima e para baixo", após o que "tentou introduzir a mão no interior das cuecas da menor", que o repeliu dirigindo-se para o quarto (pontos 9 a 12, da matéria de facto). Ainda durante o sobredito período, o arguido, no quarto de casal, faz deitar FF na sua cama e retira-lhe todas as peças de roupa, deixando-a completamente nua e massajando-a com creme, "sobretudo na zona das nádegas, forçando a menor a abrir as pernas" (pontos 15 a 18, da matéria de facto). No ano 2000, mas em data não concretamente apurada, o arguido, "aproveitando-se da ausência da sua mulher que se encontrava a trabalhar", tranca-se com a filha BB de 12 anos de idade no quarto de casal e, após a ter despido da cintura para cima, apalpa-lhe todo o corpo, "demorando-se mais tempo na região do peito e órgãos genitais" e forçando-a a manipular-lhe o pénis até ejacular sobre as pernas da menor. Situação idêntica repete-se com periocidade diária, "pelo menos por 312 vezes", até Junho de 2001 (pontos 20 a 22, da matéria de facto). Ainda "em data não concretamente apurada, mas não anterior a Julho de 2001", o arguido despe integralmente BB, então, com 13 anos de idade e introduz o pénis no interior da vagina, "sem preservativo, até ejacular", o que faz sobre as pernas daquela. "Factos de idêntica natureza e com contornos idênticos" ocorrem diariamente, "pelo menos por 504 vezes", também durante os anos de 2002 e 2003, quando a vítima tem já 14 e 15 anos de idade, respectivamente (pontos 23 e 24, da matéria de facto). "Em data não concretamente apurada, mas não anterior a Novembro de 2002" (tendo, portanto, a ofendida 10/11 anos de idade), o arguido, após deitar a filha CC na sua cama, "onde já se encontrava nú", despe-a e começa a acariciar-lhe a vagina, forçando-a ainda a manipular-lhe o pénis e roçando o corpo dele no dela (ponto 29, da matéria de facto). Noutra ocasião, o arguido, "além de lhe acariciar os órgãos genitais e de a forçar a manipular o seu pénis", tenta introduzir este último no ânus de CC, causando-lhe dor. Esta situação repete-se, "pelo menos 60 vezes", até Abril de 2004, altura em que a vítima tem ainda 12 anos de idade (pontos 31 a 33, da matéria de facto). Os comportamentos libidinosos do arguido só cessam após Abril de 2004, data em que se ausenta para o estrangeiro, "não mais regressando a território nacional, designadamente ao contacto com as suas filhas" (ponto 35, da matéria de facto). O arguido interpõe recurso da decisão do tribunal colectivo, sustentando que há um só crime de abuso sexual, na forma continuada. Tese esta que é rejeitada, liminarmente, pelo STJ, argumentando-se: 1) a excepção prevista no n.º 3, do art. 30.º, CP: "(...) salvo tratando-se da mesma vítima" não permite a "interpretação perversa" segundo a qual sendo a ofendida a mesma pessoa e existindo uma violação plúrima de bens, eminentemente, pessoais deve afirmar-se sem mais que estamos perante um crime continuado. Não, só há crime continuado nessas circunstâncias caso se verifiquem, esgotantemente, os pressupostos indicados no n.º 2, do mesmo preceito penal: isto é, violação plúrima do mesmo bem jurídico; execução, essencialmente, homogénea; haver uma mesma situação exterior que sirva de quadro de solicitação à prática do crime; existir uma culpa diminuída do agente, em virtude de uma exigibilidade sensivelmente diminuída; 2) não são circunstâncias exteriores ao arguido que o levam à prática dos crimes que lhe são imputados, mas, sim, a sua própria personalidade libidinosa (razões motivacionais endógenas, portanto); 3) o arguido é pai das vítimas, recaindo, assim, sobre ele um dever especial de tutela e respeito que viola, também; 4) a passividade aparente das vítimas não significa consentimento no sentido de "acordo" tácito, "mas muitas vezes estratégia de sobrevivência" (ponto IX, do Acórdão em análise).
Já em 14-05-2009, o Supremo Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar-se, em sede de recurso, sobre uma situação da vida peculiar: práticas sexuais envolvendo menores que se dedicam à prostituição. Assim e sendo relator o Juiz Conselheiro Dr. Soares Ramos, a matéria de facto - subjacente à questão de direito: "continuação criminosa" sindicada pelo tribunal "ad quem" - é, resumidamente, a seguinte: em Maio de 2003, o arguido AA aborda o menor CC, tendo este 13 anos de idade, no Parque Eduardo VII, que é um local procurado por adultos do sexo masculino para praticarem relações sexuais com crianças e jovens desse mesmo sexo. No interior da viatura pertencente ao arguido, este coloca o pénis de CC na sua boca e chupa-o. A partir dessa vez, AA encontra-se, por outras três ocasiões (mais concretamente, até Dezembro de 2003), com o sobredito menor, tendo em todas elas colocado o pénis de CC na sua boca chupando-o. Todavia, nos referidos quatro contactos "o menor CC, em número indeterminado de vezes" introduz, também, o pénis de AA na sua boca chupando-o e, igualmente, "em número de vezes que não se logrou apurar" o arguido roça o seu pénis no ânus do menor (ponto 56, da matéria de facto). Por intermédio de CC, o arguido AA conhece, em Outubro ou Novembro de 2003, os menores FF e EE, este último de 12 anos de idade, tendo-os levado a todos para a sua residência, onde coloca "em exibição, no aparelho de vídeo, um filme pornográfico, de natureza heterossexual" e, enquanto os três menores assistem ao filme, chupa, na presença de EE, os pénis do CC e do FF (pontos 59 a 65, da matéria de facto). "Em mais quatro ocasiões", AA leva para a sua residência os menores CC, EE e FF e, em todas essas ocasiões, conduz as vítimas à sala, exibe-lhes "filmes pornográficos de natureza heterossexual" e coloca, sucessivamente, os pénis daqueles na sua boca chupando-os, "até os menores por vezes ejacularem" (pontos 66 e 67, da matéria de facto). Em contrapartida dos favores sexuais recebidos, AA entrega a cada um dos três menores entre € 30,00 a € 40,00, levando-os ainda, por vezes, a jantar e oferecendo, também, a cada um deles um telemóvel "a fim de, facilmente, poder contactar com os mesmos" (pontos 70 a 73, da matéria de facto). Em data em concreto não determinada, mas logo após o Natal de 2003, o arguido conhece LL, à data com 13 anos de idade. Não tendo sido bem sucedido da primeira vez, AA consegue, todavia, numa segunda tentativa levar o menor LL para o seu escritório, tendo aí colocado o pénis deste último na sua boca chupando-o. De seguida, entrega-lhe € 20,00. Seguramente em data anterior a Junho de 2004 (quando LL atinge os 14 anos de idade), AA encontra-se, por mais três vezes, com LL, levando-o numa delas para a sua residência, na outra para o mesmo escritório referido acima e tendo na terceira permanecido com o menor no interior da viatura onde se faz transportar. Em todas essas ocasiões, o arguido coloca o pénis da vítima na sua boca chupando-o e entrega-lhe € 20,00 (pontos 98 a 114, da matéria de facto). Face a esta factualidade tanto o tribunal de 1.ª instância como o da Relação imputam ao arguido AA a prática, em concurso efectivo, de 9 crimes de abuso sexual de crianças sendo ofendido o menor CC, 4 crimes de abuso sexual de crianças sendo ofendido o menor EE e 4 crimes de abuso sexual de crianças sendo ofendido o menor LL, todos esses crimes p. e p. pelo art. 172.º, ns.º 1 e 2, CP (antes da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro). Tendo AA sustentado junto do STJ, entre outras coisas, que relativamente a cada um dos ofendidos há um crime continuado de abuso sexual de crianças, e não um concurso efectivo, esta instância judiciária superior vem a dar-lhe razão nessa matéria aduzindo os fundamentos seguintes: não se discutindo - mesmo antes do n.º 3, do art. 30.º, CP, (aditado pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) -, que, tratando-se da violação de bens jurídico-penais, eminentemente, pessoais, há pluraridade de infracções sendo várias as vítimas, já no que se refere a cada ofendido por duas ou mais condutas criminosas lesivas de bens daquela natureza será possível afirmar a continuidade criminosa, desde que se encontrem preenchidos todos os pressupostos previstos no n.º 2, do sobredito artigo. Assim e para além da violação plúrima do mesmo bem jurídico e da homogeneidade na execução (pressupostos estes que se verificam, claramente, "in casu", na medida em que o bem ofendido é sempre o livre desenvolvimento da personalidade sexual de menores mediante a prática pelo arguido dos mesmos actos sexuais, ou seja, a chamada "fellatio"), assume relevância dogmático-legal especial a existência de uma solicitação exógena de tal modo significativa que a culpa do agente resulte consideravelmente diminuída. Neste sentido, o tribunal "ad quem" considera que essa solicitação não existe se a respectiva situação é "procurada, provocada ou organizada pelo próprio agente". Acontece, porém, que no caso decidendo isto não se verifica; pelo contrário, "estes menores ofereciam os seus favores sexuais em local conhecido da cidade e, desse modo, facilitavam o contacto com os clientes, o que diminui substancialmente a culpa destes, embora, como é óbvio, se mantivesse a ilicitude da conduta punida nos termos da lei" (Recurso do arguido AA / Continuação criminosa, do Acórdão em análise). Portanto, conclui-se que há um crime continuado contra cada uma das vítimas. Vota, entretanto, vencido a respeito desta mesma questão de direito o Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, sustentando que não há "in casu" continuação criminosa, na medida em que o arguido não cedeu a solicitações externas, antes "procurou e organizou as oportunidades propícias para continuar a repetir a conduta ilícita". Existirá, sim, um crime de trato sucessivo, uma vez que a actuação ilícita de AA é dominada por uma mesma resolução criminosa relativamente a cada uma das vítimas: "na verdade, o arguido, ao contactar com os menores, pretendia fazer deles seus parceiros sexuais, mantendo com eles relações desse tipo sempre que lhe aprouvesse". Sendo certo que essa resolução determinada e persistente do agente evidencia, não uma culpa diminuída como é próprio do crime continuado, mas uma culpa agravada, que há de expressar-se na medida da pena aplicada.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça volta a deparar-se com a apreciação de factos que configuram a prática reiterada de um crime sexual contra menores. Trata-se de o Acórdão de 17-09-2014, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Pires da Graça. Resumidamente, aqueles factos são os seguintes: Desde 2009, ano em que a vítima BB tem 12 anos de idade, até 2012, o arguido, que é padrasto de BB, mantém com ela, "quase todas as semanas, relações de cópula completa". Aproveita-se para tanto das "ausências da sua mulher CC, mãe da criança", encontrando-se o arguido, à data dos factos, "numa situação de desemprego de longa duração" e CC ocupada "em trabalhos de limpeza remunerados". O tribunal colectivo condena o arguido, em concurso efectivo, pela prática de 21 crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos arts. 171.º, ns.º 1 e 2 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP, e 20 crimes de actos sexuais com adolescentes agravados p. e p. pelos arts. 173.º, n.º 2 e 177, n.º 1, al. b), ambos do CP, aplicando-lhe - dentro de uma moldura penal que vai dos 5 aos 25 anos de prisão - a pena única de 9 anos de prisão. Inconformado com esta decisão judicial, o arguido refere nas conclusões da respectiva motivação que deve ser condenado por um crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças agravado. Responde o Ministério Público, sustentando que os factos praticados não são subsumíveis naquela figura, desde logo porque esta pressupõe uma única resolução criminosa quando "a conduta do arguido mostra à evidência que o mesmo em cada actuação renovou o propósito criminoso, estando-se perante resoluções distintas, reformuladas de forma autónoma em relação às anteriores" (ponto 5, das conclusões). Tendo o recurso sido remetido pelo tribunal recorrido para o Supremo Tribunal de Justiça mediante o fundamento de que visa, exclusivamente, matéria de direito, esta última instância judiciária - na apreciação que faz da questão suscitada pelo recorrente - desenvolve os argumentos seguintes: 1) integrando-se o crime de trato sucessivo na figura mais ampla da unidade criminosa (que inclui, também, o crime continuado), a verdade é que aquele pressupõe uma ficção: "onde se verificam vários crimes ficciona-se que apenas houve um"; 2) a nossa lei penal contrapõe, "insofismavelmente", o crime continuado ao concurso de crimes. Assim, o crime de trato sucessivo "surge como solução claramente 'contra legem' e por isso de rejeitar liminarmente"; 3) a existência "in casu" de resoluções idênticas não nos permite afirmar a respectiva unificação: "de cada vez que se impôs à enteada teve, para o que nos ocupa, de tomar uma daquelas resoluções, tal como o agente que decide esfaquear outrem em dias distintos, assaltar determinada pessoa em várias ocasiões ou violar certo indivíduo em diversas alturas". Portanto, faltará, também, um dos pressupostos de o crime de trato sucessivo que é a verificação de uma única e mesma resolução criminosa; 4) tratando-se da mesma vítima, nada obstará à data dos factos (isto é, antes da Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro) que se conclua pela existência de um crime continuado. Todavia, ainda nesse caso é indispensável o preenchimento esgotante dos pressupostos previstos no n.º 2, art. 30.º, CP, constituindo, assim, uma "interpretação perversa" decidir que a violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduz sem mais à figura juspenal de o crime continuado; 5) não se verifica na situação da vida em análise uma culpa consideravelmente diminuída do arguido, que é o pressuposto-chave de o crime continuado; pelo contrário, "a culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente dessa relação de natureza idêntica à familiar, com a menor e sua mãe, em que era especialmente exigível ao arguido, por virtude da ascendência que tinha sobre a mesma menor com quem privava em termos familiares, que, na ausência da mãe desta, zelasse pela defesa da menor, de forma a dela cuidar e proteger, nomeadamente de quaisquer ataques aos seus direitos fundamentais". O tribunal "ad quem" decide-se, pois, pela improcedência do recurso apresentado, confirmando a imputação ao arguido da prática, em concurso efectivo, dos crimes por que vem condenado.
Concluindo. "Ex vi" art. 4.º, Lei n.º 40/2010, o crime continuado está circunscrito à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente do número de vítimas. É dizer que tratando-se de tipos legais de crime que tutelam bens, eminentemente, pessoais, se um determinado agente realiza por mais de uma vez o respectivo conteúdo está excluída sem mais a sua culpa sensivelmente diminuída, ainda que seja, fundamentalmente, o mesmo o bem violado e ele actue de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior. Devendo, assim, afirmar-se que nessas circunstâncias fácticas há um concurso de crimes, convirá, todavia, precisar melhor qual a espécie de concurso que está em causa. Tendo presente as situações analisadas e decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça que comentámos, verificamos o seguinte: na primeira delas, afirma-se que há um concurso efectivo, mas integram-se vários actos sexuais de relevo na figura de o crime de trato sucessivo (que se caracteriza pela existência de uma culpa agravada, não obstante haver uma só infracção criminal correspondente a uma única resolução criminosa); na segunda, afasta-se, liminarmente, a continuação criminosa confirmando-se a verificação de um concurso efectivo, não apenas por inexistir uma situação exógena conducente a uma prática criminosa continuada, mas, sobretudo, em virtude do arguido revelar uma culpa agravada; na terceira, confirma-se que há um crime continuado relativamente a cada vítima, que resulta, sobretudo, de o arguido se ter aproveitado da "oferta" de serviços sexuais por parte dos ofendidos; na última, é, também, a ausência de uma culpa diminuída que impossibilita a catalogação dos factos como crime continuado, sustentando-se ainda que o crime de trato sucessivo constitui uma solução "contra legem". Estamos, todavia, convencidos que em todas as hipóteses em que o tribunal "ad quem" se decide pela verificação de um concurso efectivo a solução deveria ser outra, sendo certo que após a última alteração à nossa lei penal nunca poderia equacionar-se a existência de um crime continuado. É que, a nível da ilicitude material, prevalece, no decurso da prática pelo mesmo agente dos vários factos, uma homogeneidade tal que nos impede de configurá-los como um concurso efectivo de crimes. Como se sabe, a ilicitude material corresponde à violação através de uma certa e determinada conduta da ordem jurídico-penal como garante da integridade dos bens cuja tutela lhe está confiada. É dizer que nela se materializa, em definitivo, a tipicidade contida na descrição fática da conduta proíbida. Ora, sendo esta última executada no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior e de forma essencialmente homogénea, facilmente se conclui que é um só o desígnio criminoso (melhor, opção criminosa) que preside àquela conduta do agente, independentemente desse desígnio se traduzir num plano, previamente, traçado (dolo conjunto) ou na simples renovação de uma decisão, anteriormente, assumida (dolo continuado) ou até numa multiplicidade de resoluções. Assim, parece-nos que existirá aqui um "ilícito dominante" correspondente à conduta mais grave que integra a concreta actividade criminosa, cuja moldura penal servirá de parâmetro quantitativo à pena aplicada, sem prejuízo de se considerar, também, como factores agravantes todos os restantes actos praticados. Em suma: recuperando a tese defendida por Figueiredo Dias, julgamos que face à lei penal vigente dever-se-á punir o arguido segundo as regras de o concurso de crimes aparente, impuro ou impróprio, respeitando-se, assim, integralmente o princípio jurídico-constitucional "ne bis in idem", nas suas duas vertentes: proibição da dupla valoração e mandado de esgotante apreciação.
Este acórdão, relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa, traz à colação uma das problemáticas mais difíceis da dogmática penal: a (in)imputabilidade. É a seguinte a matéria de facto dada como provada:
Casado com DD há cerca de trinta anos, o arguido AA é pai de dois filhos nascidos desta relação, ambos maiores de idade, que residem com o casal. À data dos factos, AA, ladrilhador por conta própria, atravessava um período de dificuldades financeiras, estando, também, em conflito com o sócio, seu irmão. Por outro lado, sendo consumidor de bebidas alcoólicas há cerca de 30 anos e apresentando, inclusivamente, um quadro clínico de dependência dessas bebidas, "com dificuldade em reduzir ou suspender o consumo e insuficiência no funcionamento social" (há registo de acusar, em diversas ocasiões, instabilidade psicológica, sendo visto a falar sózinho), eram frequentes nos últimos tempos situações de conflito entre o arguido e os seus familiares (mulher e filhos do casal), derivadas, precisamente, do sobredito consumo excessivo de álcool, associado, nalguns casos, a ausências de AA. Assim, numa dessas ocasiões, o arguido encetou uma discussão com a mulher DD, tendo trancado esta consigo no interior do quarto de dormir, ameaçando-a "que iriam ambos morrer". Após o que "lançou gasolina sobre a cama do casal", pegando fogo a esta com o auxílio de uma colher de pau em chamas, tendo o incêndio se propagado "pelo quarto e pelos corpos do arguido e de DD". Os filhos do casal acorreram em auxílio da mãe, tendo conseguido "de modo não concretamente apurado" arrombar a porta do quarto e retirar DD "colocando-lhe uma toalha molhada no corpo". Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, "DD sofreu queimaduras com uma extensão aproximada de 20% de superfície corporal", tendo durante o internamento hospitalar de cerca de 2 meses feito "pneumonia complicada de sepsis" e apresentando ainda hoje stress pós traumático, perturbações do equilíbrio e lesões não completamente consolidadas, que "foram até ao momento causa directa e necessária de 194 dias de doença todos com igual incapacidade para o trabalho". O arguido AA encontrava-se alcoolizado à data dos factos, "mas ciente das consequências da sua conduta", não tendo demonstrado arrependimento, "nem valoração crítica" dos actos praticados. No relatório pericial psiquiátrico junto aos autos diz-se: "Face aos elementos apurados, somos de parecer que à data da prática dos factos o examinando era capaz de avaliar a ilicitude dos factos, embora a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação se encontrasse diminuída dadas as fragilidades da sua personalidade e a sua situação de dependência, o que, sob o ponto de vista médico-legal, justifica uma diminuição da sua imputabilidade em relação aos factos concretos de que é arguido, caso estes se venham a provar".
Tendo sido condenado em 1.ª instância numa pena de 9 anos e 6 meses de prisão pela prática como autor imediato de um crime tentado de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, ns.º 1 e 2, als. b) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do CP, decisão esta confirmada pelo tribunal da Relação, o arguido AA recorre para o Supremo Tribunal de Justiça afirmando nas conclusões da motivação que "a pena aplicada revela-se demasiado severa". Assim, alega o recorrente que, tendo sido provada a sua dependência crónica de bebidas alcoólicas e encontrar-se o mesmo embriagado à data da prática dos factos, devem considerar-se verificados os requisitos de que a nossa lei penal faz depender a previsão de inimputabilidade (cfr. art. 20.º, n.º 1, CP), "ao que acresce o facto de não se ter colocado intencionalmente nesse estado para executar o desígnio criminoso". No parecer que emite, o Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça afirma, entre outras coisas, que o tribunal não pode deixar de ponderar em desfavor do arguido a particular perigosidade que este revela e se concretiza, quer na existência de um antecedente criminal (condução de veículo em estado de embriaguez), quer na circunstância de não ter assumido uma atitude de arrependimento e valoração crítica da sua conduta, quer ainda na sua provada dependência alcoólica, tudo isto a exigir "alguma agravação das necessidades de prevenção especial, pelo inquestionável perigo de assumpção de comportamentos semelhantes em situações similares que se lhe possam voltar a deparar". Já o STJ baseia-se no relatório pericial a que nos referimos acima para afastar a aplicação "in casu" do art. 20.º, n.º 1, CP: "A capacidade de autodeterminação (...) estaria diminuída, mas não anulada, de forma que a imputabilidade penal não pode ser afastada". Não tendo, também, a concepção tradicional de "imputabilidade diminuída", fundada na diminuição da culpa, correspondência na lei penal vigente, as situações da vida subsumíveis no art. 20.º, ns.º 2 e 3, CP, traduzem-se, em verdadeiro rigor, em casos de "inimputabilidade fictícia", cuja verificação fáctica é facultativa ("pode ser declarado inimputável..."). Neste sentido, o tribunal "ad quem" sustenta que "as qualidades pessoais" do arguido, reveladas nos factos "sub judice", são especialmente desvaliosas e demonstrativas de uma "culpa agravada". A este respeito, afirma-se que o recorrente evidencia "uma enorme insensibilidade perante a vida humana e uma crueldade notoriamente acima da 'normalidade'", não assumindo "o alcoolismo, se influiu na prática do crime, (...) qualquer efeito desagravante da culpa". Em conclusão, nega provimento ao recurso, confirmando a pena de prisão fixada pelas instâncias inferiores.
De acordo com a lei penal em vigor, a pena justifica-se tendo em consideração, por um lado, a preservação ou tutela de bens jurídicos e, por outro, a recuperação social do delinquente (cfr. art. 40.º, n.º 1, CP). Neste quadro legal, ideograficamente, fundado em critérios funcionalistas ou de utilidade social, a culpa, não sendo embora fundamento da pena, afirma-se como seu pressuposto e limite (cfr. art. 40.º, n.º 2, CP). Há, todavia, certos Autores que sustentam um conceito de culpa que obedece àqueles mesmos critérios funcionalistas, vendo nela somente a violação por parte da pessoa do agente de o dever de agir em conformidade com as exigências da ordem jurídico-penal vigente. Concepção esta que, a nosso ver, se concilia, dificilmente, com o sentido ético que deve informar o conteúdo da culpa e que deriva do respeito, jurídico-constitucionalmente, devido à dignidade da pessoa humana. Efectivamente,o Homem não pode ser reduzido à sua dimensão social ou política ("homo socialis"), uma vez que apenas como "homo singularis" se revela em toda a sua integridade, física e moral. Dito de outro modo: o Homem em si mesmo é anterior ao concreto Estado cuja população integra, estando ainda este último vinculado a respeitá-lo na particular superioridade ética que essa anterioridade ontológica encerra: "une vie ne vaut rien, mais rien ne vaut une vie", diz - e bem - André Malraux. Destarte, fundar, por um lado, a culpa jurídico-penal na eminente dignidade da pessoa humana e descrevê-la, materialmente, por outro, como a "violação pelo homem do dever de conformar a sua existência por forma tal que, na sua actuação na vida, não lese ou ponha em perigo bens jurídico-penais" (FIGUEIREDO DIAS I 2007, 524) constitui-se, no plano de o "ser-pessoa", numa antinomia, tal como é aporética, no plano de a "acção humana", a tese de o "livre-arbítrio": na sua particular essencialidade ético-existencial, a dignidade humana antecede o Estado que se limita a reconhecê-la, contrariamente à generalidade de os bens jurídico-penais (máxime, os "supra-individuais" ou "colectivos") que são criações do legislador ordinário. Parece-nos, pois, que a culpa em direito penal consistirá apenas na assumpção consciente pela pessoa do agente de o especial desvalor da acção típica e ilícita (através da culpa, afirmo-me na acção). Entretanto e porque está em causa uma apreciação subjectiva (isto é, centrada na pessoa do agente) do ilícito típico praticado, essa apreciação terá de assentar na presunção segundo a qual o agente poderia não ter assumido a situação. Presunção esta que subjaz à asserção fáctica seguinte, reiteradamente confirmada pelos nossos tribunais: "Agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta". Em todo o caso, o "prius" é sempre o facto, entendido este como "acção final típicamente ilícita". Aquela presunção é, todavia, ilidível ("presunção iuris tantum"), seja por inimputabilidade, seja por inexigibilidade. Deixando de parte as hipóteses legais de inexigibilidade (que não interessam na situação em análise), consideraremos apenas as de "inimputabilidade". Uma delas, porém, também não se aplica "in casu": a menoridade penal, prevista no art. 19.º, CP. Resta-nos, assim, a "inimputabilidade em razão de anomalia psíquica", art. 20.º, CP. Na linha do que afirmámos antes, esta inimputabilidade verifica-se quando, em razão de uma anomalia psíquica, a pessoa do agente está incapacitada, "no momento da prática do facto", de assumir como seu o particular desvalor de uma acção, juridico-penalmente, proíbida, seja porque não compreende esse desvalor, seja porque se encontra privada da força anímica que lhe permitiria agir em conformidade. Assim e ainda que a consequência objectiva de a deformação psíquica em causa consista na "incompreensibilidade do facto como facto do agente" (FIGUEIREDO DIAS I 2007, 570), o critério psíquico-normativo que nos possibilita decidir sobre a verificação ou não desta causa de exclusão da culpa é subjectivo, porque centrado na pessoa do agente na situação. Ora, tendo em consideração os factos provados, parece-nos que devemos concluir que a percepção assumida pelo arguido dos actos praticados traduz-se em ver neles a expressão de uma "auto-mutilação pelo fogo" a dois, incluindo aí a própria mulher com quem é casado há cerca de 30 anos (sendo este, também, o tempo de consumo abusivo de bebidas alcoólicas), havendo, assim, uma incapacidade em avaliar a concreta ilicitude do facto praticado. Atente-se, também, que se dá como provado não ter o arguido demonstrado "arrependimento nem valoração crítica da sua conduta", circunstância esta que pode encontrar o seu fundamento biopsicológico no estado delirante de AA e se concilia mal com a afirmação de que o mesmo estava "ciente das consequências da sua conduta, agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta". Aliás, o próprio declara "apenas se recordar que no dia dos factos saiu cedo de casa, por volta das sete horas, começou logo a beber (...)". Não se poderá, todavia, sustentar que há "in casu" somente uma "imputabilidade diminuída" ou, preferentemente, uma "actio libera in causa"? A favor da primeira hipótese, poder-se-á convocar o relatório pericial referido acima, designadamente quando aí se afirma que, tendo o arguido à data da prática dos factos a sua capacidade de se determinar de acordo com a avaliação de ilicitude dos mesmos diminuída, justifica-se "uma diminuição da sua imputabilidade". Todavia, parece-nos que a situação concreta não é subsumível na previsão do art. 20.º, n.º 2, CP: mesmo que se admitisse a verificação, no momento da prática do facto, dos elementos biológico ("anomalia psíquica grave, não acidental") e psicológico (capacidade de determinação "sensivelmente diminuída"), a verdade é que não se poderá afirmar - como exige o citado preceito legal: "(...) sem que por isso possa ser censurado" - que a falta de domínio evidenciada por AA sobre os efeitos da sua perturbação não lhe é censurável: estando essa apreciação de censurabilidade desprovida da conexão típica que caracteriza os sobreditos elementos, na medida em que releva da personalidade do agente (culpa pelo carácter), e derivando aqueles efeitos perversos de uma embriaguez crónica e, potencialmente, curável, será, ético-juridicamente, exigível que o alcoólatra promova essa cura. Mas poder-se-á concluir, então, que a situação presente deve ser resolvida em conformidade com os princípios gerais sobre a responsabilidade penal, incorrendo o arguido sem mais na prática de um crime de homicídio doloso: "imputabilidade diminuída autoprovocada" (TAIPAS CARVALHO Comentário Conimbricense II 1999, 1118)? Julgamos que esta figura juspenal não corresponde às circunstâncias da concreta situação em análise, uma vez que o estado de AA é de embriaguez crónica e completa: isto é, inimputabilidade completa. Quanto à segunda hipótese ("actio libera in causa"), esta verificar-se-á, desde logo, caso se possa concluir a partir dos factos provados que AA se embriaga no dia dos acontecimentos "sub judicio" para facilitar a execução de o crime de homicídio praticado contra a sua mulher e que decidira já levar a cabo, tendo agido, portanto, "ab initio" com essa intenção precisa (a.l.i.c. pré-ordenada). Assim sendo e "ex vi" art. 20.º, n.º 4, CP, a imputabilidade não é excluída: isto é, a culpa dolosa (dolo directo) deve ser afirmada. Acontece, porém, que a factualidade provada não nos permite subscrever esta hipótese, tanto mais que se demonstra serem "frequentes nos últimos tempos situações de conflito derivadas do excessivo consumo do álcool pelo arguido", sem que dessas situações tenha resultado o cometimento de qualquer delito. Poderá, todavia, verificar-se uma a.l.i.c. com dolo eventual ou negligente caindo os respectivos factos no âmbito de aplicação do art. 295.º, CP, sob a epígrafe "Embriaguez e intoxicação"? Sendo sem dúvida a autocolocação em estado de inimputabilidade censurável a AA (por diversas vezes e após a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas, o arguido trava-se de razões com a mulher e os filhos do casal, sendo, portanto, admissível que tenha, ao menos, representado como possível essa consequência), não se poderá, porém, concluir por referência ao concreto ilícito praticado (homícidio) que AA, no momento prévio ao da inimputabilidade, tenha representado aquele facto, conformando-se com a possibilidade da sua verificação (dolo eventual) ou não se conformando com ela (negligência consciente) ou ainda não tenha sequer representado o referido facto como deveria suceder (negligência inconsciente). Sobrará, assim, a hipótese de simples autocolocação censurável em estado de inimputabilidade, que - pelas razões já mencionadas - consideramos verificada "in casu". A este crime corresponde uma pena abstracta de até cinco anos de prisão ou multa até 600 dias, aceitando-se que, designadamente face ao consumo excessivo reiterado (censurável) de alcóol (cfr. art. 71.º, n.º 2, al. e), CP), a medida concreta se situe próximo do limite máximo legal: 4 anos de prisão efectiva, quantitativo que está longe de exceder a pena prevista para a tentativa de homicídio qualificado (cfr. art. 295.º, n.º 2, CP). Entretanto e para além do ilícito típico praticado (que constitui - no que respeita ao crime de autocolocação em estado de inimputabilidade - uma condição objectiva de punibilidade) e da gravidade do mesmo, AA revela uma personalidade perigosa, particularmente violenta (tem "maus vinhos", como diz o povo) e propensa à prática de factos idênticos. Assim, estão preenchidos os pressupostos de que a nossa lei penal faz depender a aplicação de uma medida de segurança detentiva, devendo esta ter uma duração mínima de três anos (cfr. art. 91.º, CP). Em todo o caso e em conformidade com o princípio do vicariato, "a medida de internamento é executada antes da pena de prisão (...) e nesta descontada" (cfr. art. 99.º, n.º 1, CP), assim se dando satisfação às exigências monistas da nossa lei penal, neste caso na execução de sanções criminais.
Neste acódão aprecia-se uma situação da vida recorrente nos nossos tribunais, que tem a ver com a prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. É relatora a Juíza Conselheira Doutora Helena Moniz, circunscrevendo-se a questão de direito suscitada no recurso interposto pela a arguida à não suspensão da execução pelo tribunal da Relação da pena de prisão aplicada de 4 anos e 9 meses de prisão. Os factos provados que interessam à dilucidação desta questão são os seguintes:
"Desde data não concretamente apurada, mas anterior a 17 de Janeiro de 2012", a arguida M (recorrente) e S "desenvolveram, mediante um plano previamente elaborado, em conjugação de esforços e divisão de tarefas, uma atividade permanente de cedência a terceiros, mediante contrapartida monetária, para consumo, ou revenda por banda destes, de heroína, cocaína e haxixe, o que vinham fazendo, com regularidade, nesta cidade do Porto" (ponto n.º 1, matéria de facto). "Posteriormente a esta data, os arguidos S, M e MF, em conjugação de esforços e divisão de tarefas, passaram a exercer a atividade de venda direta de produto estupefaciente aos consumidores que os procuravam, a troco de quantias monetárias, sendo que, de acordo com o plano elaborado e entre todos gizado e ao qual aderiram, (...) à arguida M cabia guardar as quantias recebidas com a venda do produto estupefaciente e, de forma esporádica, a venda direta de produto estupefaciente aos consumidores (...)" (ponto n.º 8, matéria de facto). Na execução desse plano, os arguidos MF, M e S, "entre as 08h05 e as 10h34, do dia 29 de Fevereiro de 2012", dirigiram-se para um local próximo da residência dos arguidos S e M, "onde estava guardado o produto estupefaciente, doseado, que iam buscar para efetuar as vendas", tendo procedido "à venda de produto estupefaciente, a troco de quantias não apuradas, a 18 indivíduos cuja identificação não se logrou obter" (pontos ns.º 9 e 10, matéria de facto). "Também no dia 2 de Março de 2012, entre as 08h15 e as 10h50, (...) os arguidos S, M e MF procederam à venda, a troco de quantia não apurada de dinheiro, de produto estupefaciente doseado, a 12 indivíduos, cuja identidade não se logrou apurar (...)" (ponto n.º 11, matéria de facto). Tendo em vista pôr cobro a esta atividade delituosa, os agentes da PSP decidiram interceptar os sobreditos arguidos. Assim, "quando foi interceptada (...), a arguida M tinha na sua posse a quantia de € 95,25 (...), em notas e moedas do Banco Central Europeu, proveniente das vendas já efetuadas por si e pelos arguidos MF e S, que lhe haviam entregado tais quantias" (ponto n.º 14, matéria de facto). "No dia 15 de Março de 2012, entre as 09h40 e as 10h22, (...) os arguidos S e M procederam à venda a troco de dinheiro de produto estupefaciente a 6 indivíduos, cuja identidade não se logrou obter, e ao V e ao J, cocaína, pelo preço de € 10,00" (ponto n.º 15, matéria de facto). "No dia 3 de Maio de 2012, entre as 10h10 e as 12h16, (...) os arguidos S e M procederam à venda, a troco de quantia não apurada, de produto estupefaciente, doseado, a 14 indivíduos, cuja identidade não se logrou apurar" (ponto n.º 17, matéria de facto). Periodicamente, o arguido E, que servia de intermediário na venda de produtos estupefacientes, "era contactado por um outro indivíduo cuja identidade não se logrou obter, que recolhia o dinheiro que este havia efetuado com as vendas e entregava-o aos arguidos S e M que, por sua vez, entregavam ao arguido E as embalagens de produto estupefaciente para este vender" (ponto n.º 19, matéria de facto). Quando, uma vez mais, os agentes da PSP decidiram intervir no sentido de pôr cobro a esta atividade e intercetaram a arguida M, esta "tinha consigo a quantia de € 214,15, em notas e moedas do BCE, resultante das vendas já efetuadas (...)" (ponto n.º 25, matéria de facto). Do relatório social da arguida M, consta, entre outros dados, que ela é mãe de 3 filhos, o último nascido do relacionamento que mantém com o co-arguido S, tendo cumprido, há aproximadamente 15 anos, pena de prisão efectiva pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. Todavia, M, tanto à data dos factos como presentemente, continua a integrar com os seus três descendentes o agregado familiar de origem, centrado na respectiva progenitora e cuja situação económica é descrita como remediada. Assim, "a organização do quotidiano da arguida é realizada em função dos cuidados que presta aos descendentes, à sua família de origem e ao exercício da sua atividade de empregada de limpeza, apesar do carácter irregular da mesma". Em jeito de conclusão, o sobredito relatório social sublinha: "Em caso de condenação e se a pena concretamente aplicada o permitir, consideramos que a arguida reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, a qual poderá contribuir para uma verdadeira interiorização do desvalor da sua conduta, sendo fundamental que a mesma diligencie no sentido da sua inserção profissional".
Tendo o tribunal de 1.ª instância aplicado à arguida uma pena de 4 anos e 9 meses de prisão, cuja execução suspende por um período idêntico, sujeito ao regime de prova, a Relação julga procedente o recurso interposto pelo Ministério Público no sentido de a exclusão da referida pena de substituição convertendo, assim, a prisão em sanção efectiva. Agora, o STJ confirma a decisão recorrida argumentando, em súmula, que, não obstante se verificar "in casu" o pressuposto formal de aplicação da pena de suspensão da execução da pena de prisão (cfr. art. 50.º, n.º 1, CP), as particulares exigências de prevenção geral, por um lado, que advêm da prática de um crime, manifestamente, lesivo da sã convivência comunitária e do livre desenvolvimento humano, assim como as necessidades de prevenção especial, por outro, consubstanciadas numa conduta, altamente, ilícita e levada a cabo ao longo de cerca de 4 meses, "e da mesma espécie daquela em que já anteriormente tinha sido condenada", obrigam a um juízo de prognose desfavorável, em termos de não se entender preenchido o pressuposto material de a suspensão da execução: "concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição" (cfr. art. 50.º, n.º 1, "in fine", CP).
Somos de opinião contrária, que fundamentamos nas razões seguintes: 1) Atendendo aos factos provados, constata-se: a) nas diversas situações datadas e descritas, as imputações de tráfico de drogas nunca são feitas, directamente, à arguida M, mas, indistintamente, a esta e ao seu companheiro S ou - ainda - a MF; b) no ponto n.º 8, da matéria de facto, diz-se, expressamente: "(...) à arguida M cabia guardar as quantias recebidas com a venda do produto estupefaciente e, de forma esporádica, a venda direta de produto estupefaciente aos consumidores". Aliás e parecendo confirmar esta atribuição de tarefa, sempre que a PSP decide pôr cobro à actividade criminosa interceptando os co-arguidos, M só tem na sua posse dinheiro proveniente das vendas efetuadas, diversamente do co-arguido S, que traz consigo produto estupefaciente. Afirmar-se que à co-autoria basta a adesão a um plano gizado por todos corresponde a um conceito subjetivista desta realidade dogmática, que contraria a teoria de o "domínio do facto", mas, sobretudo, desrespeita o teor literal do art. 26.º, 3.ª alternativa, CP: "(...) tomar parte directa na sua execução". Efectivamente e se, por um lado, a sobredita teoria - que os nossos tribunais sustentam, reiteradamente, informar o conceito de autoria vertido na nossa lei penal - consagra uma concepção restritiva, no sentido que só é autor quem domina o "se" e "como" da realização típica (devendo, nesse sentido e a nosso ver, o autor deter, não apenas o "domínio negativo" - isto é, o domínio conducente à não consumação-, mas, em definitivo, o "domínio positivo" do facto punível, que é o conducente à consumação), por outro, o próprio texto legal sublinha a relevância dogmático-normativa de a vertente objectiva da co-autoria. Portanto, não tendo sido, suficientemente, demonstrada a intervenção directa e pessoal da arguida M na execução do crime de tráfico de estupefacientes, mas somente que lhe cabia guardar o dinheiro proveniente desse tráfico cuja posse é confirmada à data da sua intercepção pela PSP, deveria o tribunal "ad quem" ter procedido à alteração jurídica da respectiva participação nos factos "sub judice" considerando-a autora imediata de um crime de receptação p. e p. pelo art. 231.º, n.º 1, CP, e não co-autora de um crime de tráfico de droga. Tanto mais que esta revisão de qualificação jurídica assume importância decisiva para a apreciação do recurso interposto por M, inscrevendo-se ainda nos poderes de cognição confiados ao STJ (cfr. art. 434.º, CPP): isto é, trata-se de matéria de direito e não de alteração substancial ou não substancial dos factos no tribunal de recurso, que só pode ter lugar na Relação em qualquer dos casos do art. 431.º CPP; 2) Destarte, a ilicitude da conduta da recorrente resulta, consideravelmente, diminuída e, consequentemente, também as exigências de prevenção, geral e especial. Diminuição essa que deve, inclusivamente, refletir-se na pena de prisão aplicada de 4 anos e 9 meses, na medida em que, sendo a pena abstracta aplicável ao crime de receptação de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias, julgamos adequada uma pena de 3 anos de prisão, cuja severidade se justifica apenas tendo em consideração a condenação anterior da arguida pela prática do crime de tráfico de estupefacientes; 3) Em todo o caso, a execução dessa sanção criminal deve ser suspensa, subordinando o tribunal a aplicação da pena de substituição a um plano de reinserção social (regime de prova). É, aliás, esta a sugestão contida no relatório social e a que fazemos referência acima, parecendo-nos, também, que, desse modo, não apenas se cumpre o pressuposto material previsto no art. 50.º, n.º 1, "in fine", CP, como se atende, convenientemente, ao "critério de escolha da pena" (art. 70.º, CP).
Neste acórdão relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Oliveira Mendes, constata-se o relevo decisivo que o nosso "tribunal de revista" atribui, reiteradamente, aos critérios de prevenção geral na escolha e/ou determinação da medida da pena, a expensas da finalidade reeducativa ou ressocializadora desta. Diz Eduardo Correia ("La prison, les mesures non-institutionnelles et le projet du Code Pénal Portugais de 1963", em Separata do volume XVI do "Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra" - Estudos "In Memoriam" do Prof. Beleza dos Santos, Coimbra, 1965, pp. 37 e s.): "Mais tout en acceptant (...) la nécessité de conserver la peine de prison, il reste clairement établi que (...) elle porte (...) la marque du transitoire, du précaire et du contingent: toute la tendance du futur droit pénal (...) devra se caractériser par l'effort réalisé en vue de substituer intégralement cette forme externe d'exprimer la réprobation éthique et sociale par une autre, ou par d'autres, qui s'adaptent mieux au sens rééducatif que toute peine doit assumer". No caso "sub judice", a arguida pratica, de forma continuada e em concurso efectivo, um crime de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, ns.º 1, als. a), b) e d), 3 e 4, CP, e um crime de peculato p. e p. pelo art. 375.º, n.º 1, CP. Efectivamente e conforme consta dos factos provados, uma funcionária pública, no exercício do seu cargo de Primeira Ajudante numa Conservatória do Registo Predial e aproveitando-se dos poderes que tinha para movimentar sozinha as respectivas contas bancárias, apropria-se, ilegitimamente e em proveito próprio, de quantias diversas, no montante global de € 42.241,33, quer mencionando números de conta fictícios nas certidões e notas informativas de registo predial, quer procedendo a rasuras de quantias registadas nos livros da Conservatória, quer ainda endossando a terceiro cheques emitidos a favor da Conservatória.
Em 1.ª instância, a referida funcionária é condenada nas penas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão e 2 anos de prisão correspondentes, respectivamente, à prática dos crimes de peculato e falsificação ou contrafacção de documento, sendo-lhe aplicada a pena conjunta de 5 anos e 6 meses de prisão. Tendo recorrido desta decisão judiciária para o STJ, a arguida alega, nas conclusões da respectiva motivação, que "a medida da pena aplicada pelo tribunal 'a quo', quer quanto às penas parcelares, quer quanto à pena unitária, mostra-se superior à medida da culpa e vem restringir a reintegração da recorrente na sociedade". Neste sentido, requer a aplicação de uma pena conjunta não superior a 4 anos e a suspensão da sua execução. Já o Ministério Público junto da 1.ª instância sustenta, na contra-motivação apresentada, que o tribunal recorrido sopesou, na sua decisão, todas as atenuantes invocadas pela arguida - não ter antecedentes criminais, haver restituído cerca de € 23.000,00 dos € 42.000,00 subtraídos, terem decorrido mais de 10 anos sobre os factos, a sua idade actual (57 anos) e encontrar-se aposentada e inserida social e familiarmente - para efeitos das penas parcelares aplicadas, revelando-se a pena conjunta de 5 anos e 6 meses de prisão justa e adequada, na medida em que "é um facto notório que estamos perante criminalidade grave, por desrespeitadora dos bens do Estado, que são de todos nós, e que se trata de conduta reiterada no tempo, pelo que razões de prevenção geral e a necessidade de protecção da vítima são prementes". Acresce que foi ainda ponderado que a reparação forçada do prejuízo, além de parcial, ocorreu muito tarde, sendo certo que a arguida carece de socialização e de uma correcta integração social, apontando nesse sentido o desrespeito manifestado pela ação da justiça, que se concretizou na sua ausência à audiência de julgamento e na impossibilidade de assegurar a sua presença de modo coercivo. Finalmente, o Procurador-Geral Adjunto no tribunal "ad quem" afirma, no parecer que emite, que, em sede das penas parcelares, sobressai imediatamente a elevada ilicitude e culpa da arguida, cuja conduta criminosa perdura ao longo de cerca de 14 meses, "como sobressai igualmente, como factor posterior ao crime, a total ausência de interiorização do mal do crime e o ostensivo desrespeito pela ação da justiça". Sendo, por outro lado, pouco relevantes as circunstâncias que convoca a seu favor: assim e no que respeita ao lapso de tempo entretanto decorrido, esse lapso "é, em grande parte, da sua própria e exclusiva responsabilidade ao ausentar-se para o estrangeiro, não obstante estar sujeita a 'termo de identidade e residência', sem autorização nem comunicação ao tribunal, descurando por completo a sua defesa e a ação da justiça"; a reparação parcial do prejuízo causado ao Estado não partiu de uma atitude espontânea da sua parte, tendo sido "antes determinada pelo próprio decurso dos processos de averiguações e disciplinar que lhe foram movidos"; por fim, o factor "idade" apresenta hoje um significado de menor relevo, "atenta desde logo a actual esperança média de vida da população portuguesa, mormente a feminina". Quanto à pena do concurso, admite-se que possa ser ponderada uma ligeira redução para os 5 anos de prisão. Em todo o caso, sempre prisão efectiva, e "isto porque inquestionáveis exigências de prevenção geral (reforço da consciência jurídica comunitária, no que respeita ao sentimento de segurança face à violação das normas penais) - que não podem, em caso algum, ser descuradas -, sempre imporiam um juízo de prognose desfavorável à possibilidade de escolha de uma pena não privativa da liberdade".
Na apreciação que faz ao presente recurso, o STJ acaba por conceder uma relevância jurídico-penal maior às atenuantes invocadas pela arguida, reduzindo as penas parcelares para 3 anos e 6 meses de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão no que respeita aos crimes de peculato e falsificação de documento, respectivamente. Também a pena conjunta é fixada em 4 anos de prisão, em vez dos 5 anos e 6 meses de prisão determinados pelo tribunal "a quo". Todavia, mantém-se a privação de liberdade, argumentando-se que se está "perante comportamento delituoso que afecta, acentuadamente, o sentimento jurídico comunitário, causando alarme social, consabido que a sociedade, face à degradação a que o Estado de direito vem sendo sujeito por 'interesses' da mais variada ordem, cada vez olha com mais desconfiança as instituições do Estado e o exercício de funções públicas, olhar a que não escapam os tribunais e os que neles operam". Ou seja: num caso de média criminalidade (considerando de pequena e média criminalidade os factos sancionados com pena de prisão não superior a 5 anos), atende-se mais à satisfação de sentimentos jurídicos variáveis da população, tantas vezes artificialmente criados e "alimentados" (designadamente, pelos meios de comunicação social), em detrimento de particulares exigências reeducativas ou de prevenção da reincidência, que a pena de prisão consabidamente não cumpre ou cumpre mal. Assim e a nosso ver, o tribunal "ad quem" deveria ter suspendido a execução da pena de prisão aplicada, sendo certo que essa suspensão seria, necessariamente, acompanhada do regime de prova (cfr. art. 53.º, n.º 3, CP). Regime este que "assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio (...) dos serviços de reinserção social" (art. 53.º, n.º 2, CP). Poder-se-á, todavia, contra-argumentar que, tendo em consideração a idade da arguida e a sua situação pessoal de reformada, as necessidades de reinserção social são pouco significativas. Não nos parece, sobretudo porque o aspecto mais crítico que a situação "sub judice" evidencia é a deficiente interiorização dos valores da ordem jurídica por parte da condenada, que se manifesta no desrespeito perante a ação da justiça (aliás, muito justamente sublinhado nas respectivas alegações pelos ilustres representantes do Ministério Público).
Convém recordar que no artigo 84.º, 1.ª parte, do seu Projecto da Parte Geral, Eduardo Correia adopta já a previsão seguinte: "Na escolha entre várias penas aplicáveis, o tribunal deve preferir as não detentivas às detentivas, sempre que as primeiras permitam preparar convenientemente a personalidade do delinquente para não violar os valores jurídico-criminais". De igual modo, no estudo acima referido (p. 70), o penalista português assevera que "ce n'est d'ailleurs qu'en faisant appel à une gamme étendue de réactions non-institutionnelles (...) que l'on parviendra, même sur le plan éthico-juridique, tel que nous l'entendons, à mettre en oeuvre une pénologie différenciée, répondant réellement au sens du droit criminel moderne".
Neste acórdão (relatado pelo Juiz Conselheiro Dr. Maia Costa), está, sobretudo, em causa a aplicação de o regime de atenuação especial da pena, tratando-se de jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos. Assim, estatui-se no artigo 4.º, Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro: "Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado".
No recurso que interpõe para o STJ do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, o arguido alega que - sobretudo, em razão da idade (tinha 18 anos à data da prática dos factos) e da sua qualidade de réu primário (nunca antes tinha delinquido, sendo considerado por professores e colegas um jovem educado e, socialmente, enquadrado) - deveria ter beneficiado do sobredito regime especial de atenuação da pena. Para tanto, serve-se ainda da perícia médico-legal, que descreve a conduta criminosa como um acto de pânico próprio da juventude, relatório este que é, todavia, desmentido pela perícia sobre a personalidade do agente, que informa o ponto 53 dos "factos provados", a saber: "O arguido apresenta fragilidades ao nível interno, afectivo, revelando dificuldade em estabelecer relações de proximidade/intimidade, de sintonizar emocionalmente com o Outro (tem lacunas ao nível da capacidade de se colocar no lugar do Outro), parecendo evidenciar tendência para o controlo, principalmente sobre os relacionamentos de cariz íntimo. Procura controlar os sentimentos/atitudes mais agressivas, evidenciando dificuldade em aceder à frustração e à zanga/raiva, procurando, assim, manter para si e para os outros uma imagem ajustada".
A respeito desta mesma questão de direito, o Procurador-Geral Adjunto no STJ afirma que, existindo, por certo, aspectos positivos nas condições pessoais do arguido - nomeadamente, a ausência de antecedentes criminais e outros problemas comportamentais anteriores -, a particular gravidade dos ilícitos praticados, mas, sobretudo, certas facetas de personalidade, particularmente, críticas no que respeita à sua capacidade de reinserção social sustentam, inteiramente, o juízo de prognose desfavorável emitido pelo tribunal de 1.ª instância e confirmado em sede de recurso. Neste sentido, aponta-se "para uma personalidade de contornos problemáticos e decisivamente avessa aos valores da ordem jurídica".
Vejamos, entretanto, a matéria de facto dada como provada: Após ter sido convencido pela sua namorada que "tinha sido assaltada por indivíduos de raça negra, que a teriam também tentado violar", tendo esses indivíduos agido atendendo a "uma hipotética 'encomenda' do CC" (matéria de facto, ponto n.º 4), o arguido AA "engendrou um plano para obter satisfações e 'fazer a folha'" ao possível mandante (matéria de facto, ponto n.º 5). Na execução desse plano, "AA telefonou ao CC do telemóvel do BB", tendo combinado com a vítima encontrarem-se todos nuns armazéns abandonados (matéria de facto, pontos ns.º 8 e 9). Aí e "em conjugação de esforços" com BB, atraíram CC à cobertura dos sobreditos armazéns, tendo AA subido "em primeiro lugar, seguido pelo CC", enquanto "BB aguardou no solo" (matéria de facto, pontos ns.º 10 a 13). Nessa altura, "AA desferiu um pontapé na cabeça do CC", que desceu de imediato, e já no solo a vítima foi agredida por BB, desferindo-lhe este "vários socos que atingiram a vítima na face e lhe provocaram a queda" (matéria de facto, pontos ns.º 14 e 15). Tendo-se aproximado e colocado em cima do CC, "apertando-lhe o pescoço", AA quis que o ofendido confessasse o plano urdido contra a namorada, negando-se CC a confirmá-lo (matéria de facto, pontos ns.º 17 e 18). Após ter conseguido libertar-se, CC voltou a "cair junto a umas paletes", altura em que AA "começou a bater-lhe com um pau em diversas partes do corpo, designadamente na cara e cabeça" (matéria de facto, pontos ns.º 21 e 22). Já muito debilitado, mas tendo ainda conseguido sair do armazém fugindo, CC foi alcançado por AA, que o encostou a uma parede, desferindo-lhe "com a navalha que trazia diversos golpes no corpo (...), pelo menos, treze vezes, na zona abdominal, no tórax, no pescoço e na cabeça", deixando, assim, a vítima prostrada no chão (matéria de facto, ponto n.º 24). "Estando, então, o CC semi-inconsciente, (...) BB, seguindo instruções do arguido AA, arrastou-o pelas pernas para um local que distava dali cerca de 50 metros", enquanto o comparsa se deslocava "ao interior de um dos armazéns donde trouxe um recipiente plástico com um produto inflamável (aguarrás), que sabia ali existir, encharcou as calças e o calçado da vítima, e ateou fogo às pernas do CC" (matéria de facto, pontos ns.º 26 e 27). Finalmente e "continuando a ser visíveis sinais de vida no CC, (...) o arguido AA atingiu-o com mais pedras, tijolos e pedaços de parede e jogou-lhe com um bloco de cimento de grandes dimensões em cima da cabeça, após o que, e quando as pernas de CC já ardiam francamente", ele e o companheiro BB abandonaram o local (matéria de facto, ponto n.º 28). "Como consequência directa e necessária da actuação supra descrita, (...) o CC sofreu as seguintes lesões (...)", que lhe "provocaram de modo directo e necessário a morte" (matéria de facto, pontos ns.º 30 a 37). Seguidamente, ambos os comparsas dirigiram-se para casa de AA "para assistir a um jogo de futebol que estava a ser transmitido na televisão, tendo-se o BB retirado para casa ao fim de algum tempo e o arguido assistido ao jogo" (matéria de facto, ponto n.º 39).
Perante esta factualidade e a circunstância, também, provada de ter sido bom o comportamento anterior do arguido, tanto na escola como em família ("AA foi uma criança/adolescente sereno/tranquilo, responsável e respeitador dos limites impostos pelas figuras de referência, não tendo sido assinaladas quaisquer anomalias no seu percurso de socialização", cfr. matéria de facto, ponto n.º 47), o tribunal "ad quem" afirma: "Os factos dos autos apresentam-se, pois, como uma conduta excecional, surpreendente mesmo, face ao comportamento anterior do arguido". Entretanto, conclui daí que, não tendo a conduta criminosa sido determinada nem influenciada "por problemas de inserção social ou de formação da personalidade", não se verifica "in casu" o requisito material de a atenuação especial da pena: constituir essa atenuação um incentivo à "reinserção social" ou "reeducação" do jovem delinquente. Razão pela qual o STJ mantém a pena aplicada pelas instâncias inferiores de 19 anos de prisão.
Esta decisão judiciária revela-se-nos paradigmática de uma compreensão repressiva ou intimidatória da pena de prisão, que ganha cada vez mais adeptos. Dificilmente se poderá questionar a barbaridade manifesta que a presente conduta criminosa evidencia e se materializa num grau elevado de ilicitude e culpa expresso no facto punível. Neste sentido, serão significativas as exigências de prevenção geral e censura pessoal que o concreto caso "sub judice" reclama e comporta. Todavia, o regime penal especial para jovens assenta, única e exclusivamente, em finalidades particulares de integração social: isto é, existirem "razões sérias" que imponham a atenuação, em ordem a assegurar uma mais fácil "reinserção social" do condenado. Destarte, afastando a atenuação, o STJ confirma, implicitamente, a antissociabilidade renitente do arguido, tanto mais que não nega "os efeitos 'dessocializadores' que o cumprimento de uma pena de prisão normalmente envolve". Estranhamente, porém, fundamenta a sua decisão na ausência de especiais necessidades de "reinserção social" ou "reeducação" do delinquente em causa! Dito de outro modo: face à particular brutalidade do ocorrido, emerge, sobretudo, o sentimento de indignação social, que se reflete na aplicação de um "castigo" exemplar, a expensas de outras medidas não institucionais de natureza pedagógica e psicossociológica. Aliás, a anormalidade do sucedido - que o próprio tribunal "ad quem" sublinha e reconhece - parece sugerir estarmos perante uma reacção intempestiva e descontrolada, acicatada pelas "acusações" feitas pela namorada e reveladora de uma personalidade imatura e "explosiva". Tudo a exigir uma resposta especializada, não apenas consentânea com a idade do arguido à data dos factos, mas "potencializadora" de aspectos positivos comportamentais documentados na prova produzida, resposta essa que uma longa permanência na prisão poderá prejudicar, em definitivo. Em suma e contrariamente à posição judiciária que faz vencimento, a pena abstracta de "homicídio qualificado" (art. 132.º, n.º 1, CP) deveria ter sido, especialmente, atenuada e, portanto, fixada, nos termos do art. 73.º, CP, entre 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão. Dentro desta moldura penal e tendo em consideração as exigências mínimas de prevenção geral, julga-se adequada uma pena de 10 anos de prisão, opostamente aos 19 anos de prisão considerados pelo STJ como cumprindo, "embora porventura pelo limiar mínimo, as exigências da prevenção (...)".
Este acórdão é paradigmático da importância decisiva que uma descrição, suficientemente, detalhada da matéria de facto tem para uma aplicação da lei penal adequada às particularidades da situação concreta. O arguido AA é condenado, em concurso efectivo, pela prática, no dia 19 de agosto de 2011, de 6 crimes de roubo (art. 210.º 1, do Código Penal), 4 crimes de coacção sexual (art. 163.º 1, do Código Penal) e 2 crimes de coacção agravada (arts. 154.º 1 e 155.º 1 al. a), ambos do Código Penal), no dia 23 do mesmo mês e ano, de 1 crime de roubo (art. 210.º 1, do Código Penal) e 3 crimes de roubo, na forma tentada (arts. 210.º 1, 22.º, 23.º 1 e 2 e 73.º, todos do Código Penal), no dia imediatamente a seguir, de 2 crimes de roubo (art. 210.º 1, do Código Penal) e, no dia 10 de setembro de 2011, de dois crimes de roubo (art. 210.º 1, do Código Penal), 2 crimes de violação (art. 164.º 1 al. a), do Código Penal) e 1 crime de ofensa à integridade física (art. 143.º 1, do Código Penal). Todavia e à excepção dos delitos praticados a 10 de setembro, não resultam da matéria de facto elementos inequívocos que nos permitam concluir "quem executou o quê". Assim, o arguido AA e outros comparsas (alguns deles não identificados), actuando "em conjugação de esforços e vontades em cada uma das situações descritas, no intuito conseguido de fazer valer a sua vontade pela superioridade numérica e actuação coordenada, em benefício dos membros do grupo" (ponto 70, matéria de facto), "no dia 19.08.2011 (...) deslocaram-se todos à localidade da Quinta do Conde" (ponto 1, matéria de facto), detectando aí um grupo de seis jovens. "Após terem parcialmente coberto os seus rostos com gorros e outras peças de roupa, abordaram aqueles jovens, empunhando o arguido FF um objecto em tudo semelhante a uma pistola" (ponto 2, matéria de facto). Tendo exigido aos jovens os objectos de valor que traziam consigo, cada um destes entregou o que possuía. De seguida, "obrigaram-nos a retirar todas as suas roupas e a entregar-lhas, deixando-os nus e forçando-os a colocarem-se em fila indiana e a agarrarem os pénis uns dos outros", tendo o arguido FF colocado a "pistola" na boca do ofendido II, "fazendo 'um, dó, li, tá", dizendo que mataria o último a sair da fila" e agredindo na cabeça com a dita "pistola" cada vítima retirada da fila "por força da contagem do 'um, dó, li, tá'" (ponto 12, matéria de facto). Após todos os jovens terem saído da fila, "os arguidos ausentaram-se do local, levando consigo parte da roupa dos ofendidos" (ponto 13, matéria de facto). Pergunta-se: à excepção de FF, a referência genérica a todos os outros co-arguidos será suficiente para imputar a AA (recorrente) os crimes de roubo, coacção sexual e coacção agravada, a título de co-autoria? No dia 23.08.2011, tendo-se deslocado à localidade da Moita, o recorrente e vários outros indivíduos "abordaram o grupo de jovens que ali se encontrava, em conjugação de esforços e com o intuito de se apropriarem dos valores que estes detivessem em sua posse" (ponto 24, matéria de facto). O arguido AA ou um dos indivíduos que o acompanhava, "trazia na sua posse um objecto semelhante a uma pistola e outro deles trazia um pau" (ponto 23, matéria de facto). "Um deles agarrou a NN pelo pescoço" e retirou-lhe os objectos que possuía (ponto 25, matéria de facto). Após o que todos eles "cercaram (...) OO pretendendo que o mesmo lhes entregasse os objectos que tivesse em seu poder" (ponto 26, matéria de facto). Seguidamente, aproximaram-se dos demais jovens, obrigaram-nos a colocarem-se em fila, mas "quando chegou a vez do PP entregar os seus objectos este fugiu sem o fazer, sendo agredido, na cabeça, com um pau empunhado" por um dos infractores (respectivamente, pontos 27 e 28, matéria de facto). Também QQ fugiu do local, "sendo agredido, nas costas, com um pau empunhado" por um dos criminosos (ponto 29, matéria de facto). Tendo por base esta factualidade, o arguido AA é responsabilizado como co-autor pela prática de um crime de roubo consumado e três outros crimes de roubo, na forma tentada. Pergunta-se, de novo: há base factual suficiente para suportar esta condenação? Logo no dia seguinte, um grupo de pessoas - entre as quais se incluía o arguido AA - dirigiu-se a um café, todos eles "encapuzados" e um deles munido de um "objecto semelhante a uma caçadeira" (respectivamente, pontos 32 e 33, matéria de facto). Enquanto dois deles, "um dos quais FF", entraram no interior do estabelecimento, os restantes permaneceram no exterior, "onde também se encontravam alguns clientes", empunhando um destes a "caçadeira" (ponto 34, matéria de facto). "Encostando-lhe a caçadeira à cabeça," um dos indivíduos "que permaneceu no exterior abordou (...) SS, enquanto outro" lhe subtraiu o que possuía, num valor total acima dos € 3.000,00 (ponto 36, matéria de facto). "Abordaram também a mulher de SS que ali se encontrava com ele, apropriando-se de um fio de prata que esta trazia consigo, no valor de € 100,00" (ponto 37, matéria de facto). Finalmente, puseram-se todos em fuga. Reitera-se a mesma questão: há matéria de facto bastante para considerar o recorrente co-autor de dois crimes de roubo? No dia 10.09.2011, na serra da Arrábida, o arguido AA e diversas outras pessoas aproximaram-se de um veículo estacionado num recinto aí existente, "apeados, de rostos cobertos com gorros, passa-montanhas e capuzes, alguns com luvas nas mãos, e empunhando dois objectos semelhantes a uma pistola e a uma caçadeira de canos longos" (ponto 41, matéria de facto). Tendo surprendido o casal que se encontrava no interior do veículo, sob a ameaça da "caçadeira" um deles "sentou-se no lugar do condutor, outro no lugar do pendura, dois dos outros no banco de trás, um de cada lado dos ofendidos" (ponto 42, matéria de facto). De imediato, apropriaram-se dos objectos que cada um dos membros do casal possuía (ponto 43, matéria de facto), arrancando com o carro das vítimas, enquanto um dos comparsas os seguia "no veículo em que todos eles se haviam feito transportar" (ponto 44, matéria de facto). Em seguida, os arguidos GG e TT, na posse do cartão de débito bancário de um dos ofendidos e respectivo código, deslocaram-se à cidade de Setúbal, "onde procederam a levantamento de quantia em numerário de € 130,00" (ponto 48, matéria de facto). Entretanto, os arguidos AA e FF, que tinham ficado junto aos ofendidos, obrigaram o homem a permanecer no interior da viatura, empunhando os objectos que aparentavam tratar-se de armas e ameaçando-o matá-lo (respectivamente, pontos 49 e 51, matéria de facto). Após o que exigiram que a mulher se despisse da cintura para baixo, obrigando-a a introduzir na sua boca o pénis de um dos arguidos, enquanto o outro mantinha cópula com ela. "Em seguida, este arguido introduziu o pénis na boca da ofendida, friccionando-o, e o primeiro arguido introduziu o seu pénis na vagina (...), friccionando-o até ejacular" (respectivamente, pontos 53 a 56, matéria de facto). Perante tais factos, o homem "pediu-lhes que parassem, e um dos arguidos desferiu-lhe uma pancada na cabeça com a arma que mantinha na sua posse" (ponto 51, matéria de facto). Quando os arguidos GG e TT regressaram de Setúbal, todos eles, "após jogarem a chave do veículo da ofendida para o mato ali existente, ausentaram-se do local" (ponto 57, matéria de facto). Ao arguido AA são imputados como co-autor dois crimes de roubo, um de ofensa à integridade física simples e dois de violação: desconsiderando, para já, este último, pergunta-se, pela terceira vez, se relativamente aos restantes os factos provados admitem aquela qualificação jurídica?
O Supremo Tribunal de Justiça delimita o objecto do recurso à discussão da medida da pena conjunta fixada pelas instâncias inferiores em 12 anos de prisão, rejeitando o segmento desse recurso respeitante aos crimes parcelares e penas correspondentes: é que se trata aí de matéria que o tribunal "a quo" apreciou e decidiu já, em sede de recurso, confirmando a sentença condenatória da 1.ª instância que aplica a cada crime pena de prisão não superior a 8 anos (cfr. arts. 432.º 1 al. b), 400.º 1 al. f), 420.º 1 al. b) e 414.º 2, todos do Código de Processo Penal). Todavia, o acórdão do "tribunal ad quem", de que é relator o Conselheiro Dr. Sousa Fontes, deveria, a nosso ver, ir para além do objecto acima referido, fundamentalmente por duas ordens de razões: 1) "ex vi" art. 410.º 2, do Código de Processo Penal, o Supremo tem o poder-dever de se pronunciar "ex officio" sobre determinados vícios atinentes à matéria de facto, desde que esse vícios resultem "do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum". Ora, um desses vícios respeita à "insuficiência para a decisão da matéria de facto provada", vício este que julgamos verificar-se na decisão recorrida (como procuraremos evidenciar adiante) e deveria ter determinado o reenvio parcial do processo para o tribunal "a quo" (cfr. art. 426.º 2, do Código de Processo Penal); 2) tendo, por um lado, a medida da pena conjunta como parâmetros (máximo e mínimo) as "penas concretamente aplicadas aos vários crimes" e exigindo, por outro, o axioma "nulla poena sine crimen" (corolário do princípio da legalidade criminal) a verificação da existência ou não do delito conexo (em todas as suas dimensões, jurídico-penalmente, relevantes) o tribunal "ad quem" pode ser obrigado a pronunciar-se sobre questões de direito subtraídas, em princípio, à sua competência. Concretizando: a pena conjunta confirmada pelo tribunal recorrido de 12 anos de prisão, tem a respectiva medida determinada dentro da seguinte moldura penal: 6 a 25 anos de prisão, sendo que o limite mínimo corresponde à pena aplicada a cada crime de violação - que é "a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" (cfr. art. 77.º 2, do Código Penal) - e o limite máximo à pena mais elevada prevista pela nossa lei penal, na medida em que "a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" ultrapassa aquela pena (cfr. art. 77.º 2, do Código Penal). Assim, se chegarmos à conclusão que os factos provados não sustentam à luz do respectivo preceito juspenal que se considere o arguido AA como co-autor da prática de crimes incluídos na construção da sobredita moldura penal do concurso - circunstância esta que, obviamente, importa, também, para a fixação da pena conjunta -, não será porque cada um desses crimes é objecto de decisão irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça que este tribunal superior poderá negar-se a um pronunciamento sobre a competente questão jurídica.
Partindo destes pressupostos processuais penais, sustentamos que a respeito da maioria dos delitos imputados ao arguido AA, a saber: roubo (respectivamente, pontos 1 a 10, 20 a 29, 32 a 37 e 39 a 47, matéria de facto), coacção sexual (ponto 12, matéria de facto), coacção (ponto 11, matéria de facto) e ofensa à integridade física (ponto 51, matéria de facto) a factualidade assente não nos permite determinar a conduta objectiva do referido sujeito. Efectivamente e para além de se reiterar que "os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades" (expressão "estafada" através da qual os tribunais iludem tantas vezes a insuficiência probatória dos factos submetidos a julgamento e desrespeitam os ditames de um "direito penal do facto", que é o único conforme à axiologia própria de um Estado de direito), ignora-se, por completo, o que cada um fez, em concreto: v.g., " Os arguidos FF, GG, AA e HH deslocaram-se todos à localidade da Quinta do Conde. Nesse local, (...) detectaram um grupo de seis jovens (...). Acto contínuo, exigiram aos jovens os objectos de valor que traziam consigo. Deste modo, foram-lhes entregues por II (...)" (respectivamente, pontos 1, 2, 3 e 4, matéria de facto); "Enquanto os ofendidos lhes entregavam os mencionados objectos e após tal entrega, os arguidos supra mencionados agrediram-nos com socos e pontapés (...)" (ponto 10, matéria de facto); "Depois de se apropriarem dos bens dos ofendidos, obrigaram-nos a retirar todas as suas roupas e a entregar-lhas, deixando-os nus e forçando-os a colocarem-se em fila indiana e a agarrarem os pénis uns dos outros" (ponto 12, matéria de facto); "Os arguidos deslocaram-se à localidade da Moita, acompanhados de mais um ou dois indivíduos não identificados (...). Os arguidos e os indivíduos que os acompanhavam abordaram então o grupo de jovens que ali se encontrava, em conjugação de esforços e com o intuito de se apropriarem dos valores que estes detivessem em sua posse. Assim, um deles agarrou a NN pelo pescoço e retirou-lhe o telemóvel (...)" (respectivamente, pontos 20, 24 e 25, matéria de facto), etc. etc. Acontece, porém, que a co-autoria não se basta com o acordo de vontades criminosas (ainda que tácito), exigindo ainda o art. 26.º, 3.ª alternativa, do Código Penal, que se tome parte directa na execução do facto. É dizer que em consonância com a teoria de o "domínio do facto" (que inspira , dogmaticamente, esta e outras formas particulares de autoria) à componente subjectiva (acordo) deve somar-se um segmento objectivo (execução conjunta), de tal sorte que possa afirmar-se que o agente detém o domínio positivo (domínio conducente à consumação, traduzindo-se a intervenção do respectivo sujeito numa parte típica do ilícito criminal) do facto "funcional" (diz-se "funcional" porque o facto global punível resulta da articulação do(s) acto(s) praticados, simultaneamente ou não, pelos vários agentes). Domínio este que, por sua vez, não existe só porque o criminoso intervém na fase executiva, sendo ainda indispensável que a respectiva contribuição se revele, tipicamente, essencial à consumação. Mais: apenas esta caracterização dogmática da particular vertente objectiva da co-autoria nos permite distingui-la da cumplicidade, uma vez que esta pode, também, efectivar-se na fase executiva e pressupõe, por regra, um acordo entre os vários intervenientes, mas ao contrário da co-autoria só confere quando muito ao respectivo sujeito o domínio negativo do facto (domínio conducente à não consumação, não se realizando o crime se o cúmplice não agir ou interromper a sua actuação).
Todavia, a imputação genérica que criticamos acima não se verifica já a respeito do crime de violação: aí sabemos, claramente, que os arguidos AA e FF, ameaçando matar VV, "enquanto, em simultâneo, lhe desferiam chapadas", começaram a tocar-lhe nos seios. "De seguida, exigiram que VV se despisse da cintura para baixo", tendo AA e FF constrangido-a a praticar com cada um deles cópula e coito oral (respectivamente, pontos 50 e 52 a 57, matéria de facto). Tendo o companheiro UU pedido aos arguidos que parassem, um deles "desferiu-lhe uma pancada na cabeça com a arma que mantinha na sua posse, e ambos obrigaram-no a permanecer no interior da viatura, ameaçando matá-lo" (ponto 51, matéria de facto). Perante estes factos provados, o tribunal "a quo", confirmando a decisão do tribunal colectivo de 1.ª instância, condena - bem - AA como co-autor de dois crimes de violação (por meio de violência e ameaça grave exercidas, simultânea ou sequencialmente, com o comparsa, não apenas viola VV, como a obriga a ser violada por FF), mas imputa-lhe -mal - um crime de ofensa à integridade física simples praticado contra UU (na matéria de facto dada como provada, não se identifica o concreto agressor). Entretanto e ainda que promovendo uma "alteração substancial dos factos" (cfr. arts 1.º al. f) e 359.º, ambos do Código de Processo Penal), deveria o tribunal colectivo ter incluído na comunicação feita ao Ministério Público (1.2. Relatório) uma nova infracção: coacção agravada em co-autoria, uma vez que AA e FF, ameaçando matar UU, constrangem este a permanecer dentro da viatura (cfr. arts. 154.º 1 e 155.º 1 al. a), ambos do Código Penal).
Concluindo. Em nossa opinião, o Supremo Tribunal de Justiça, fazendo uso "ex officio" do poder-dever previsto no art. 410.º 2 al. a), do Código de Processo Penal, teria decidido acertadamente, caso tivesse decretado o reenvio para o tribunal "a quo" deste processo (cfr. art. 426.º 2, do Código de Processo Penal), em virtude da descrição, manifestamente, insuficiente dos factos provados não lhe permitir a verificação jurídica da pena conjunta aplicada ao recorrente.
Tendo sido condenada em processo singular comum na pena de 110 dias de multa à taxa diária de € 30,00 (perfazendo, assim, o montante global de € 3.300,00) pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência p. e p. pelo art. 148.º 1 e 3, com referência ao art. 144.º al. c), ambos do Código Penal, a arguida (médica) interpõe recurso para o tribunal da Relação circunscrito à seguinte questão de direito: atendendo à matéria de facto provada não resulta preenchido o conceito de negligência vertido no art. 15.º, do Código Penal, devendo, consequentemente, a ré ser absolvida. São os seguintes os factos provados: a doente, grávida de termo, tem de ser submetida, de urgência (apresenta pouco líquido amniótico, tendo sido já submetida a duas cesarianas anteriores), a uma intervenção cirúrgica de parto por cesariana, sendo a arguida a operadora cirurgiã, responsável por essa intervenção, ainda que co-adjuvada por outra médica. Por razões que respeitam, única e exclusivamente, à administração da respectiva unidade de saúde, a equipa médica de cirurgia não integra, habitualmente, um enfermeiro instrumentista, "que tem como funções essenciais fornecer o material cirúrgico e assegurar que nenhum material fique no corpo do doente, através da contagem final", facto que se verifica, também, na situação "sub judicio" (ponto 5, matéria de facto). Assim, a arguida tem adoptado, em todas as cirurgias que realiza, a técnica cirúrgica consistente "em só utilizar compressas grandes e nunca as largar, excepto no caixote do lixo, após cada utilização" (ponto 31, matéria de facto). Também, agora, a mesma não procede à contagem das compressas utilizadas nem ordena a qualquer elemento da equipa cirúrgica que o faça (ponto 9, matéria de facto). Além da contagem das compressas - e de todo o material e instrumentos cirúrgicos utilizados na intervenção - constituir o procedimento, cirurgicamente, correcto, a obesidade da doente conhecida pela arguida é tida como um risco acrescido de ser deixado material cirúrgico no corpo, após a operação (ponto 6, matéria de facto). Em todo o caso, "numa cesariana de urgência, como a dos autos, o cirurgião-chefe, e mesmo o cirurgião-ajudante, dificilmente têm tempo e condições para assegurar o controle eficaz dos materiais e instrumentos cirúrgicos uma vez que têm de se preocupar com a execução técnica do acto cirúrgico e com todas as intercorrências que dele possam emergir" (ponto 42, matéria de facto). Acresce que não se encontra instituído à época no "bloco operatório" do hospital em causa "um protocolo de actuação que determinasse o exercício das funções de enfermeiro instrumentista por parte de outro enfermeiro quando aquele não se encontra presente", sendo certo que "o pessoal de enfermagem não procede, habitualmente, à execução de actos não protocolados, a simples pedido do cirurgião-chefe" (respectivamente, pontos 44 e 45, matéria de facto). No decurso da intervenção, uma das compressas utilizadas acaba por ficar dentro do corpo da vítima, sem que qualquer elemento da equipa se tenha apercebido desse facto, "apesar de terem feito uma revisão da cavidade abdominal" (ponto 7, matéria de facto). Essa compressa é causa de uma infecção, que se manifesta 10 dias após a alta hospitalar ("pus na costura da cirurgia, com cheiro a podre", ponto 13, matéria de facto). "Após vários exames e tratamentos de substituição dos pensos, causadores de dores e incómodos", que se prolongam por mais de 2 meses, a doente é internada, "tendo sido feito vários exames, sem ter sido detectada a origem dos problemas na ferida" (ponto 14, matéria de facto). Por se manterem os problemas na costura, a doente é internada, novamente, tendo sido feito um RX abdominal que identifica, finalmente, a compressa "esquecida" no seu corpo. Na sequência de nova cirurgia, é-lhe extraída a compressa e efectuada anamastose, estando esta "contra-indicada face à presença da compressa com fezes na cavidade abdominal" (ponto 52, matéria de facto). Em virtude de problemas respiratórios e de equilíbrio hemodinâmico resultantes desta última intervenção, a paciente é transferida para o Hospital de S. José, apresentando um quadro de risco de vida (ponto 22, matéria de facto). Após ter sido sujeita a internamento prolongado (durante um mês), no decurso do qual é ligada a um ventilador e tratada da infecção abdominal, a vítima é considerada curada. "A arguida, não obstante ter sido a cirurgiã responsável pela execução da cesariana (...) e apesar da sua presença diária" no hospital, "em nenhum momento é chamada a intervir no decurso do longo ciclo assistencial pós-operatório" (ponto 54, matéria de facto).
Face à factualidade provada, o tribunal recorrido sustenta, na exposição dos fundamentos da sua decisão (plenamente aceites pelo tribunal "ad quem"), que a arguida pratica, por negligência, o crime que lhe é imputado, na medida em que, sabendo não estar presente na sala de cirurgia o enfermeiro instrumentista e sendo a doente obesa, viola o dever de cuidado a que está vinculada como médica operadora principal omitindo a contagem das compressas ou não ordenando a outrem essa contagem e confiando que a prática cirúrgica, habitualmente, adoptada seria suficiente para garantir a não realização do resultado danoso representado (cfr. art. 15.º al. a), do Código Penal). Por outro lado, argumenta-se, também, que as regras de causalidade adequada - que presidem à imputação objectiva do evento à conduta do agente - apenas permitem responsabilizar a arguida pelas dores agudas sofridas pela vítima após a cirurgia, mas não pelo perigo de vida em que esta incorre e justifica o seu internamento no Hospital de S. José, em virtude desta última consequência derivar da intervenção de terceiros (médicos) aquando da extracção da compressa (princípio da auto-responsabilidade de terceiros). Argumentário este que a Relação subscreve, igualmente. Pergunta-se: sendo certo que a imputação objectiva da "doença particularmente dolorosa" (cfr. art. 144.º al. c), do Código Penal) à conduta da arguida não nos merece objecção, poder-se-á afirmar o mesmo no que respeita à negligência (imputação subjectiva)? Parece-nos que não. Afinal, consta da matéria de facto que "casos há em que o material cirúrgico permanece, por vários anos, no interior do corpo humano, sem gerar qualquer problema do foro infeccioso, ou sintomatologia" (ponto 29, matéria de facto); acrescentando-se: "o referido material, que inclui as compressas, é estéril, e o organismo, muitas vezes, tolera-o sem problemas (...)" (ponto 30, matéria de facto), afirmações estas que são corroboradas por algumas das testemunhas chamadas a depor. Assim, a médica-coadjuvante da arguida diz: "(...) que é possível que as mesmas (compressas) fiquem esquecidas no corpo de uma pessoa sem surgirem complicações"; a médica anestesista "(...) ser possível uma compressa permanecer vários anos no interior do corpo sem surgirem problemas"; outro médico especializado em cirurgia geral "(...) é possível uma compressa ficar vários anos no corpo da pessoa sem complicações"; ainda outro profissional, director do serviço de cirurgia geral, "(...) é possível uma compressa ficar vários anos no corpo da pessoa sem complicações". Posto o que e se não quisermos negar a existência dogmática de um "tipo de ilícito subjectivo negligente" e, dessa forma, concluirmos pela "sobrevivência" de um qualquer direito penal objectivo (conclusão esta que, a nosso ver, se revela inaceitável face ao prescrito no art. 15.º, do Código Penal), julgamos que o enquadramento jurídico-penal da situação da vida em análise deve ser um outro, que apresenta ainda a vantagem de nos subtrair a estas aporias.
Dos factos provados resulta, claramente, que a arguida viola as "leges artis", em conformidade com as quais se deve proceder à contagem das compressas utilizadas numa intervenção cirúrgica, de modo a evitar que alguma ou algumas delas permaneçam no corpo do doente finda essa intervenção. Parece, por outro lado, acertado afirmar que desta acção deriva, objectivamente, um perigo ou risco, que se vem a materializar numa grave ofensa para a saúde da vítima: mais concretamente, "doença particularmente dolorosa" (nexo de dupla causalidade). Está, assim, preenchido o tipo de ilícito inscrito no art. 150.º 2, do Código Penal. Todavia, a agente actua numa situação de urgência, "pois tratava-se de um procedimento (...) que se não fosse realizado poderia colocar em risco a saúde ou vida da paciente" (ponto 6, matéria de facto). A circunstância de não estar presente na sala de cirurgia o enfermeiro instrumentista, que deveria "assegurar que nenhum material fique no corpo da doente, através da contagem final" (ponto 5, matéria de facto), não apenas é, totalmente, estranha à responsabilidade da arguida (deve-se a razões que dizem, única e exclusivamente, respeito à organização administrativa interna), como se revela irrelevante para a caracterização da urgência em si mesma. Por outro lado, "numa cesariana de urgência, (...) o cirurgião-chefe, e mesmo o cirurgião-ajudante, dificilmente têm tempo e condições para assegurar o controle eficaz dos materiais e instrumentos cirúrgicos uma vez que têm de se preocupar com a execução técnica do acto cirúrgico e com todas as intercorrências que dele possam emergir" (ponto 42, matéria de facto). Finalmente, não estando "instituído à época (...) um protocolo de actuação que determinasse o exercício das funções de enfermeiro instrumentista por parte de outro enfermeiro quando aquele não se encontra presente" (ponto 44, matéria de facto), dá-se como provado que "o pessoal de enfermagem não procede, habitualmente, à execução de actos não protocolados, a simples pedido do cirurgião-chefe" (ponto 45, matéria de facto). Tudo isto nos permite concluir não ser razoável exigir ao agente, "segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente", sendo certo que aquele actua para "afastar um perigo actual, e não removível de outro modo," que ameaça a vida da doente (cfr. art. 35.º 1, do Código Penal). É dizer que a arguida, praticando um facto ilícito, fá-lo, contudo, ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa, expressamente consagrada na nossa lei penal: "Estado de necessidade desculpante". Portanto e em síntese, o tribunal "ad quem" deveria ter revogado a decisão recorrida, dando provimento ao recurso apresentado.
Tendo sido relator o Juiz Conselheiro Dr. Oliveira Mendes, analisa-se neste acórdão um caso que se traduz na violação plúrima de tipos legais de crime inscritos no Capítulo V, Título I, da Parte Especial, do Código Penal: "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual". Antes do mais, vejamos os factos provados: Na primavera de 2008, tendo a vítima BB 13 anos de idade (nascera em 1995) e sabendo que esta se encontrava sózinha em casa, o arguido, que casara, recentemente, com a mãe daquela (DD), obriga a menor a ter relações sexuais consigo, "agarrando-a pelo braço, (...) introduzindo o seu pénis erecto na vagina dela, e friccionando" (ponto 10, matéria de facto). Noutra ocasião, em data não apurada, mas no decurso de 2009 (quando BB tinha, portanto, 14 anos de idade), tendo o arguido pretendido desde a primeira vez assegurar o silêncio da vítima, dizendo-lhe "que ela iria voltar para o Brasil e voltar para a miséria, e que seria capaz de matar a mãe dela, se DD o confrontasse" (ponto 14, matéria de facto), força-a à prática de sexo oral. Também durante o ano de 2009, o arguido mantém cópula com a ofendida, num armazém de sua propriedade. De outra vez, igualmente em data desconhecida (que se situa, entretanto, entre a primavera de 2008 e o primeiro semestre de 2011), o arguido retorna ao armazém, praticando coito anal com BB. Em 2009 e no quarto que partilhava com DD, o ofensor renova as relações de cópula, que mantivera já, noutras ocasiões, com a vítima. "Em todas as ocasiões descritas, BB afirmou ao arguido que não queria, debateu-se e empurrou o arguido, que sempre a agarrava pelo braço" (ponto 26, matéria de facto). Já no carnaval de 2012 (tinha, portanto, BB 17 anos de idade), "o arguido apalpou a perna de BB" (ponto 30, matéria de facto). CC, filha de DD e dois anos mais nova que a irmã BB (pois, nascera em 1997), é, também, vítima das agressões sexuais do arguido. Assim, este, no primeiro semestre de 2010, mas em datas não determinadas (tendo a ofendida 13 anos de idade), começa "a abraçar de forma apertada CC, e a tocar-lhe nas pernas" (ponto 32, matéria de facto). No mesmo período, o arguido, quando ia acordar CC, toca-lhe, em várias ocasiões, nos seios e nas pernas. Noutra ocasião, mas poucos dias mais tarde, o ofensor, para além de apalpar os seios e as pernas da vítima, obriga CC a manipular-lhe o pénis até ejacular. Doutras três vezes, entre 2010 e 2011, o arguido, de pé, ejacula sobre a barriga da menor, que se encontra deitada. No mesmo intervalo de tempo, mas em data desconhecida, o ofensor, após se ter despido e posicionado sobre a menor, que se mantém vestida, obriga-a a friccionar-lhe o pénis até ejacular. Ainda no decurso de igual período de tempo, o arguido, fechando-se na casa de banho com CC, constrange-a à prática do mesmo ato sexual. Desde esse mesmo período (2010-2011) até ao carnaval de 2012, altura em que a vítima tinha já 15 anos de idade, quando vai buscá-la à vila de Sesimbra, transportando-a no seu carro, o arguido obriga CC a masturbá-lo, tendo tentado de uma das vezes sexo oral, mas logrando CC empurrá-lo, negando-se à prática deste ato. "Por duas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, mas entre 2010 e 2011", o arguido, após levar a vítima para o seu armazém e tendo-a "projectado sobre o colchão que ali se encontrava", esfrega-se "premindo o seu corpo contra o da menor" e obriga-a a friccionar o pénis até ejacular (pontos 48 a 50, matéria de facto). "Desde a primeira vez que agarrou CC e a forçou a masturbá-lo, e com vista a manter as condutas descritas sobre CC e a evitar que esta o denunciasse pelo sucedido, o arguido convenceu-a que se o contrariasse e denunciasse, ela e as suas irmãs iriam ter de regressar ao Brasil, e a ter uma vida miserável, bem como que a sua mãe ia matá-lo, ou ele ia matar a mãe delas" (ponto 51, matéria de facto). No que respeita à terceira vítima II e tendo esta 15 anos de idade (o facto ocorre em julho de 2011, tendo ela nascido em 1996), o arguido durante o percurso de carro até sua casa, acaricia a perna de II acima do joelho, parando porque a ofendida afasta a mão do arguido com a sua. Finalmente, MM, que como II é amiga de CC e tem 15 anos de idade (nascera em 1996), é apalpada pelo arguido, tendo este "feito um gesto desde a parte exterior da coixa, em sentido transversal, até à parte interna do joelho" (ponto 63, matéria de facto).
Face a toda esta factualidade, o tribunal colectivo de 1.ª instância condena o arguido na pena conjunta de 13 anos de prisão, imputando-lhe um crime continuado de violação agravada e um crime continuado de coacção sexual agravada. Após o recurso interposto pelo condenado para o tribunal da Relação e na sequência deste, procede-se à alteração jurídica dos factos, tendo sido aquele considerado autor, em concurso efectivo, de cinco crimes de violação agravada (praticados todos eles contra BB), oito crimes de coacção sexual agravada (praticados todos eles contra CC) e dois crimes de coacção agravada (praticados contra II e MM, respectivamente). Desta última decisão judicial, apela o réu para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, em síntese, nas conclusões: tendo em consideração os factos provados resulta manifesto que a defesa do arguido está prejudicada, na medida em que "nem as alegadas vítimas, nem a própria acusação, referem com precisão o ano, data, hora e lugar das práticas dos actos sexuais, assim como as circunstâncias em que os crimes foram cometidos" (ponto 61, conclusões); por outro lado, não há qualquer razão que permita afirmar "sequer remotamente a verificação de qualquer espécie de violência capaz de configurar ameaça grave ou violação" (ponto 58, conclusões); em terceiro lugar, infere-se dos depoimentos das vítimas que estas "facilitaram a prática dos actos sexuais imputados ao recorrente", tendo ainda este actuado no quadro de uma mesma solicitação exterior, circunstâncias estas que diminuem a sua culpa e conduzem à existência de um crime continuado, não de um concurso de crimes (ponto 86, conclusões); por último, a medida da pena conjunta aplicada - 13 anos de prisão - revela-se "revoltantemente exagerada", designadamente "tratando-se de um sexagenário com um comportamento anterior irrepreensível" e correspondendo, assim, "praticamente a prisão perpétua" (ponto 5, conclusões). Todavia, o tribunal "ad quem", tendo rejeitado, parcialmente, o recurso interposto pelo arguido, circunscreve a sua apreciação e decisão às duas questões seguintes: 1) Qualificação jurídica dos factos. Estando apenas em causa a prática reiterada de um crime de violação agravada contra BB (as penas concretas aplicadas a cada um dos restantes crimes, não sendo superiores a 5 anos de prisão, obstam a que seja admissível recurso da respectiva decisão proferida, em recurso, pela relação), cujo tipo objectivo integra o uso de violência ou ameaça grave "ex vi" art. 164.º 1, do Código Penal, entende-se que o arguido "sempre que se relacionou sexualmente com a ofendida BB utilizou meios violentos sobre a mesma": agarrando-a pelo braço e ameaçando-a, caso o denunciasse, que ela iria voltar para o Brasil e para a miséria, e que ele seria capaz de matar a mãe dela, se esta o confrontasse. Por outro lado, não há um crime continuado, mas concurso de crimes, desde logo porque o uso constante dos referidos meios de intimidação traduz-se na falta do requisito legal da diminuição sensível da culpa (cfr. art. 30.º 2, "in fine", do Código Penal); 2) Medida das penas singulares e conjunta. Dos 5 crimes de violação praticados contra BB, quatro deles são agravados em virtude da vítima ser menor de 16 anos, um deles por ser menor de 14 anos (respectivamente, art. 177.º 5 e 6, do Código Penal). Assim e no que respeita aos quatro primeiros (cuja pena abstracta varia entre 4 anos e 13 anos e 4 meses de prisão), entende-se reduzir a pena aplicada a cada um deles de 8 para 6 anos e 6 meses de prisão. Todavia, mantem-se intocada a pena conjunta fixada pelas instâncias inferiores de 13 anos de prisão. Neste sentido, argumenta-se: a) a pena conjunta deve ser encontrada entre um limite mínimo de 8 anos de prisão correspondente à "mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" e um limite máximo de 25 anos de prisão, que é a "barreira" legal intransponível apesar da soma das penas concretamente aplicadas ultrapassar, largamente, esse limite (art. 77.º 2, do Código Penal); b) determinando a nossa lei penal que na fixação da pena única sejam "considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente" (art. 77.º 1, do Código Penal), constata-se "in casu" que os factos delituosos individuais estão conexionados entre si, constituindo, assim, a expressão de uma personalidade, fortemente, marcada por uma inclinação para a prática de crimes sexuais; por outro lado, "a violência inerente à prática da maioria dos factos, violência exercida sobre as ofendidas, sem que o arguido tenha interiorizado devidamente o desvalor ético do seu comportamento, evidencia personalidade desconforme para com o direito" ("Medida da pena conjunta", "in fine", do Acórdão do STJ, de 08-01-2014); independentemente das exigências de prevenção, geral e especial, evidenciadas por cada crime praticado e sem violação do princípio da proibição de dupla valoração, o facto ilícito global revela-se, especialmente, ofensivo da paz social, devendo a pena conjunta aplicada manifestar um efeito dissuasor e ressocializador significativo; "a primariedade do arguido, situação comum à maioria esmagadora dos cidadãos, pouco relevo possui" ("Medidas das penas singulares", "in fine", do Acórdão do STJ, de 08-01-2014).
O nosso sistema processual penal apresenta uma estrutura acusatória, integrada, todavia, pelo princípio da investigação: sendo a acusação pública "lato sensu" a definir e fixar o objecto do processo penal (princípio da acusação), cabe à entidade que preside ao julgamento a livre apreciação, mas segundo as regras da experiência, da prova produzida pelos sujeitos processuais, tendo ainda o poder-dever de ordenar "ex officio" a apresentação de outros meios de prova que se lhe afigurem necessários à aplicação do direito ao caso decidendo (princípio da investigação). Neste sentido e apesar da verdade fáctica (logo, também jurídica) absoluta se revelar, processualmente, inalcançável, o juiz está obrigado dentro dos limites que lhe são impostos pelo "thema decidendum" (vinculação temática do tribunal) a servir-se de todos os meios de prova que permitam uma fixação dos factos além de toda a dúvida razoável. Quer-nos parecer, porém, que a descrição da concreta conduta criminosa do arguido apresenta "lacunas" significativas, que relevam para o conteúdo da decisão adoptada. Vejamos: 1) Em relação a cada crime sexual praticado, não há uma data precisa ou sequer aproximada (diz-se, v.g., "desde data não concretamente apurada, mas que se reporta, pelo menos, desde a primavera do ano de 2008 até data indeterminada do primeiro semestre do ano 2011", ponto 7 da matéria de facto, ou "em data que não se logrou precisar, na primavera de 2008", ponto 8 da matéria de facto, ou ainda "em datas que não se logrou apurar, (...) desde a primavera de 2008 e durante o ano subsequente", ponto 15 da matéria de facto); 2) em relação a cada tipo legal de crime, desconhece-se o número exacto de vezes em que é violado pela conduta do agente. Assim, tratando-se de coacção sexual (ofendida CC), diz-se: "em várias ocasiões, (...) quando o arguido ia acordar CC, tocava-lhe nos seios e nas pernas" (ponto 33, matéria de facto); "em datas que não se lograram apurar, (...) o arguido foi buscar CC à vila de Sesimbra, transportando-a de carro, ocasião em que tocava nas mãos e pernas da menor, e obrigava-a a friccionar-lhe o pénis" (ponto 46, matéria de facto). Já no que respeita à violação (ofendida BB), a respectiva descrição fáctica revela-se mais precisa, não obstante se afirmar, v.g., "em pelo menos uma ocasião, (...) o arguido forçou BB a introduzir na boca o seu pénis erecto" (pontos 16 e 17, matéria de facto). Destarte e a partir do exame da matéria de facto, não apenas nos parece arbitrária (isto é, sem suporte fáctico) a quantificação feita pelo tribunal "a quo" (cinco crimes de violação, oito crimes de coacção sexual), como os termos exactos da respectiva agravação resultam incompreensíveis, tendo em consideração que a pena abstracta aplicável varia consoante a idade do menor e esta em virtude da sobredita indefinição temporal nem sempre é determinável: por referência à moldura penal prevista no tipo de crime fundamental, agrava-se de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos, de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se for menor de 16 anos (cfr., respectivamente, art. 177.º 6 e 5, do Código Penal). Por outro lado e tendo em conta o perfil psicológico do arguido, que é, exemplarmente, retratado nos pontos 80 a 100 da matéria de facto, concluimos tratar-se de um sexagenário na plena posse das suas capacidades físicas, que procura afirmar, narcisisticamente, essas suas qualidades vitais, designadamente através de uma actividade sexual desregrada e que tem como parceiras privilegiadas raparigas jovens. Nada nos permite, todavia, imputar-lhe uma natureza violenta e agressiva, afirmando-se, pelo contrário, que "em termos inter-pessoais, o arguido apresenta-se um sujeito sedutor, assumindo uma imagem social influente, valorizando as suas capacidades desportivas e profissionais, numa postura pró-activa e prestável relativamente aos outros" (ponto 89, matéria de facto). Entendemos, pois, que os factos "sub judicio" devem ser, também, valorados à luz desta análise da personalidade do arguido, em ordem a determinar-se nesses factos "segundo as regras da experiência" (cfr. art. 127.º, do Código de Processo Penal) a dimensão real de violência ou ameaça grave inerente à prática dos crimes que lhe são imputados: coacção sexual e violação. São as seguintes as expressões que na factualidade fixada sugerem uma ideia de violência: "Em todas as ocasiões descritas, BB afirmou ao arguido que não queria, debateu-se e empurrou o arguido, que sempre a agarrava pelo braço" (ponto 26, matéria de facto); "agarrou CC e prendeu a mão desta na sua (...) Entretanto, CC empurrava o arguido, mas ele agarrava-a" (pontos 36 e 37, matéria de facto). Quanto à ameaça grave, esta consistirá em o arguido ter convencido as ofendidas que "se o contrariassem e denunciassem iriam ter de regressar ao Brasil, e a ter uma vida miserável, bem como que a sua mãe ia matá-lo, ou ele ia matar a mãe delas" (ponto 51, matéria de facto). Serão estes factos provados, suficientemente, inequívocos para que se possa considerar preenchido o segmento de agressão (física e/ou psíquica) do tipo objectivo do crime de coacção sexual (que nesta parte é comum ao de violação, afirmando-se, assim, este último crime como uma coacção sexual especial)? Pensamos que não. Considerando a compleição atlética do arguido e a particular corporalidade inerente às relações sexuais (sobretudo, se não são - como é o caso - a expressão de um sentimento de afecto mais profundo), julgamos que a violência física manifestada não evidencia a suficiente intensidade e medida que nos permita considerá-la "in casu" como meio idóneo de coacção sexual. Aliás, noutra ocasião, também, documentada na matéria de facto, a ofendida CC consegue contrariar com sucesso a vontade libidinosa "violenta" do arguido: "numa das ocasiões em que o arguido forçou CC a masturbá-lo, o arguido agarrou a cabeça de CC, direccionando-a para o seu pénis erecto, para que esta lhe fizesse sexo oral, mas CC logrou empurrá-lo, enquanto dizia 'não'" (ponto 47, matéria de facto). Relativamente à ameaça, a própria lei penal restringe a sua tipicidade à "ameaça grave"; ora, tendemos a valorar as consequências anunciadas pelo arguido (regresso das ofendidas ao Brasil e/ou confronto trágico mãe/padrasto) mais como uma "atoarda" destinada a incutir temor nas jovens do que como um aviso sério, que seja a expressão de um perigo real para a vida da progenitora. Efectivamente, a própria maneira de ser do arguido referida acima, marcada por uma auto-estima próxima da "gabarolice", conduz-nos a essa conclusão. Acresce que, se a violência/ameaça tivessem sido, verdadeiramente, aflitivas, dificilmente se poderá compreender que a situação narrada nos autos se tenha alastrado por um tão amplo espaço de tempo sem o conhecimento de DD, sobretudo se tivermos presente o convívio íntimo diário entre os protagonistas: padrasto, mãe e filhas. Finalmente, a indefinição temporal e numérica quanto aos actos criminosos praticados é indício de uma certa "rotineiridade" ou "habitualidade", que inscrita num quadro exógeno constante (relação familiar) nos leva a preferir a hipótese legal de crime continuado à de concurso de crimes.
Concluindo. Tendo apenas presente a parte não rejeitada do recurso, constata-se que a ofendida BB é menor de 14 anos à data do crime descrito nos pontos 8 a 13 da matéria de facto, podendo ter ou tendo já 14 ou mais anos de idade, mas menos de 18 anos (as datas concretas das infracções praticadas situam-se num lapso de tempo que vai desde 2008 a 2011), em todas as outras ocasiões. Assim e por se considerar que a conduta do arguido não apresenta a intensidade e medida próprias dos meios "violência" e "ameaça grave" tipificados nos arts. 163.º 1 "Coacção sexual", do Código Penal (e incluídos, também, na descrição típica do crime de violação "ex vi" art. 164.º 1, do mesmo Código), prefere-se integrar a primeira daquelas condutas criminosas na prática do crime p. e p. no art. 171.º 2, CP ("Abuso sexual de crianças", qualificado), subsumindo-se as restantes no tipo legal de crime do art. 172.º 1, CP: isto é, o arguido pratica nestas outras situações um crime de "abuso sexual de menores dependentes", uma vez que a vítima está confiada de facto à assistência do padrasto. Outrossim, entende-se que tais factos configuram a verificação de um crime continuado: o agente aproveita-se da relação de intimidade criada pelo vínculo familiar para cometer, reiteradamente, contra a enteada BB um crime sexual (convém sublinhar que à data dos factos o art. 30.º 3, CP, admite a figura de o crime continuado mesmo que o bem jurídico concretamente tutelado seja de natureza eminentemente pessoal, desde que se trate da mesma vítima). Todavia, essa prática reiterada só poderá assumir aquela qualificação jurídico-penal caso evidencie uma culpa consideravelmente diminuída do ofensor (cfr. art. 30.º 2, "in fine", CP). Parece-nos que, sob este aspecto que se revela decisivo, o conceito de Eduardo Correia de "culpa na formação da personalidade" não contribui - antes, pelo contrário - para a resolução adequada do problema: a culpa (ainda que entendida em sentido pessoal-normativo) diz respeito ao concreto facto individual praticado, esgotando-se aí. Assim sendo, os factos provados sugerem que a conduta inicial do agente evidencia uma particular resolução criminosa ("durante estes factos, BB afirmou que não queria, debateu-se e empurrou o arguido que a agarrava", ponto 11 da matéria de facto) cuja intensidade dolosa se atenua, progressivamente, nas vezes seguintes ( em nenhuma delas se faz referência à resistência física oferecida pela vítima, dizendo-se apenas que o arguido "forçou" ou manteve BB "agarrada pelo braço", pontos 17, 20 e 25 da matéria de facto), por certo em virtude da sobredita proximidade relacional entre agressor e ofendida. Por outro lado e, agora, em sede de medida da pena global aplicada, sustentamos que a respectiva determinação deve assentar na seguinte configuração jurídica: 1) no que respeita à vítima BB, o arguido pratica um crime de "abuso sexual de crianças" agravado (arts. 171.º 2 e 177.º 1 b), ambos do Código Penal) a que se segue um crime de "abuso sexual de menores dependentes", também, agravado (arts. 172.º 1 e 177.º 1 b), ambos do Código Penal). Há, todavia, e como dissemos já, uma relação de continuidade entre todos os factos, não obstando a tal continuidade a circunstância desses factos serem recondutíveis a tipos legais de crime distintos: há uma unidade de sentido de ilicitude que lhes é dada pela violação do mesmo bem jurídico-penal (autodeterminação sexual) e é compatível com uma pluralidade de concretas resoluções criminosas; 2) tratando-se de CC, é a mesma vítima, por razões idênticas às expostas acima, de um crime continuado agravado de "abuso sexual de crianças" (arts. 171.º 1 e 177.º 1 b), ambos do Código Penal); 3) finalmente e no que concerne, respectivamente, às vítimas II e MM, tendo ambas 15 anos de idade à data dos factos, ainda que se considere que acariciar a perna configura um "ato sexual de relevo" devemos decidir-nos pela não aplicação do art. 173.º 1, do Código Penal ("Atos sexuais com adolescentes"), em virtude de o arguido não ter abusado da inexperiência das ofendidas, seduzindo-as. Efectivamente, estas reagiram de imediato àquele ato: "II afastou a mão do arguido com a sua" (ponto 58, matéria de facto) e "MM dirigiu-lhe a expressão 'tira a mão de mim'", afastando-se "apressadamente" do local (ponto 64, matéria de facto). Portanto e existindo "ex vi" art. 30.º 3, do Código Penal, um concurso efectivo entre os crimes praticados, respectivamente, contra BB e CC, no caso desta última a medida da pena deve ser encontrada dentro da moldura de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão (agravamento de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, da pena prevista no art. 171.º 1, do Código Penal), e no que respeita a BB tendo por referência a pena abstracta de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão (agravamento de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, da pena prevista no art. 171.º 2, do Código Penal). De acordo com as regras especiais da punição do concurso (art. 77.º 2, do Código Penal), importa antes do mais determinar as penas concretamente aplicadas a cada crime. Assim e no que respeita a BB, parece-nos que o comportamento do arguido descrito nos pontos 8 a 13 da matéria de facto (que respeita à primeira cópula praticada com a ofendida, tendo esta oferecido resistência) corresponde "à conduta mais grave que integra a continuação" (cfr. art. 79.º 1, do Código Penal). Posto o que e dentro da moldura penal agravada que lhe é aplicável e referenciámos acima de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão, entende-se que a pena de 8 anos de prisão cumpre os critérios gerais previstos no art. 71.º, do Código Penal, atendendo, também, ao grau elevado de ilicitude e culpa que a concreta conduta do arguido evidencia, sem esquecer, todavia, o seu comportamento impoluto anterior. Quanto à ofendida CC e dentro da pena abstracta supra mencionada de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, julgamos que a pena de 6 anos de prisão é a adequada ao sancionamento da acção criminosa mais grave que integra a continuação (descrita nos pontos 35 a 40 da matéria de facto e que se refere à primeira vez em que o arguido obrigou a vítima a manipular o pénis daquele até ejacular). Sendo, portanto, a moldura penal do concurso de 8 a 14 anos de prisão (cfr. art. 77.º 2, do Código Penal), sustenta-se que o Supremo deveria ter reduzido a pena conjunta confirmada pelo tribunal "a quo", fixando-a em 10 anos de prisão.
Sendo relator o Juiz Conselheiro Dr. Souto de Moura, aprecia-se e decide-se neste acórdão o recurso interposto pelo arguido da sentença que o condenou, em 1.ª instância, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada p. e p. no art. 145.º 1 al. b) e 2, do Código Penal, na pena de 9 anos de prisão.
Sumariamente, a factualidade dada como provada é a seguinte: no seguimento de uma discussão com a ex-companheira, que se recusara a ajudar o arguido num serviço de limpeza, este último ataca-a à navalhada, aproveitando a circunstância de a vítima se encontrar de costas voltadas para si a pintar as unhas dos pés, ao mesmo tempo que lhe diz: "hoje tu vais morrer". Todavia, vendo-a desfalecer e a sangrar abundantemente, o arguido pega-lhe ao colo levando-a até ao exterior da residência e solicitando aí ajuda a um vizinho. Ofensor e vítima acabam por ser transportados ao hospital, onde a mulher é tratada de vários ferimentos que lhe causaram perigo para a vida.
Nas conclusões que apresenta, o recorrente questiona, por um lado, a qualificação jurídica dos factos consignada na decisão recorrida e, por outro, a medida da pena fixada pelo tribunal "a quo". Assim e no que respeita àquela qualificação, afirma que a sua conduta não evidencia a especial censurabilidade ou perversidade que lhe é imputada: não tendo sido provado o real conteúdo da discussão entre o arguido e a ofendida, não se pode concluir que o recorrente agiu por "motivo fútil" (cfr. art. 132.º 2 al. e), aplicável "ex vi" art. 145.º 2, ambos do Código Penal); antes de iniciar a agressão o réu "anunciou" a sua intenção criminosa - "agora vais morrer" -, razão pela qual essa agressão não é realizada subreptícia e traiçoeiramente, ou nas palavras da nossa lei penal utilizando "meio insidioso" (cfr. art. 132.º 2 al. i), aplicável "ex vi" art. 145.º 2, ambos do Código Penal). Portanto e tendo o arguido sido absolvido da prática de um crime de homicídio na forma tentada em virtude de haver impedido, voluntariamente, a respectiva consumação, só poderá ser condenado, na pior das hipóteses, por um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. no art. 144.º al. d), do Código Penal. Já no que concerne à medida da pena, alega-se que, sendo a pena abstracta prevista no respectivo tipo legal de crime (isto é, "ofensa à integridade física grave") de 2 a 10 anos, as condições pessoais do agente (é réu primário), a sua conduta anterior (sempre trabalhou, ajudando a família na Ucrânia desde que o pai morreu), mas, sobretudo, o "arrependimento activo" que revelou após ter anavalhado a vítima contribuem, no seu todo, para uma redução significativa das exigências de prevenção especial positiva ou ressocialização, devendo, consequentemente, a pena principal concreta ser fixada no máximo de 5 anos de prisão e suspensa na sua execução, nos termos do art. 50.º, do Código Penal.
Na apreciação que faz deste recurso, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), cujos poderes de cognição se circunscrevem à matéria de direito (sem prejuízo do conhecimento "ex officio" dos vícios previstos no art. 410.º 2, do Código de Processo Penal), considera que os factos dados como provados pelo tribunal colectivo, não apenas confirmam o móbil real do crime (recusa da vítima em ajudar o arguido num serviço de limpeza), como permitem afirmar o carácter inesperado da agressão: "Não é por se estar a discutir com alguém que se tem que prever que esse alguém, sem ser visto, ao agir pelas costas da vítima, a vai atacar com uma navalha na região cervical" (C - APRECIAÇÃO / I - Qualificação jurídica, ponto b.). Por outro lado, não é por se ter obstado, voluntariamente, à consumação do crime de homicídio, que se deve negar a especial censurabilidade dos atos cometidos: a desistência voluntária opera, única e exclusivamente, em relação ao crime tentado, em termos de se constituir numa causa de exclusão pessoal da pena aplicável àquela infracção (cfr. art. 24.º 1, do Código Penal). Finalmente, entende-se que, atendendendo aos critérios de determinação da pena consignados no art. 71.º, do Código Penal, em conjugação com o disposto no art. 40.º 1 e 2, do mesmo diploma legal, as exigências de prevenção geral são significativas, mas "as necessidades de prevenção especial não se mostram prementes" (C - APRECIAÇÃO / II - Medida da pena, ponto c.). Fixa-se, assim, a pena em 6 anos de prisão.
Vejamos: se desconsiderarmos a relevância jurídico-penal da desistência empreendida pelo arguido, este teria cometido - em conformidade com a factualidade assente - dois crimes (abstenhamo-nos, também, das particulares circunstâncias qualificantes): homicídio, na forma tentada, e ofensa à integridade física grave. Todavia, estas infracções estariam em concurso aparente ou impróprio (antiga consução), evidenciando o facto global um sentido de ilícito dominante (tentativa de homicídio) em que se inscreveria a ofensividade adstrita ao crime contra a integridade física. Assim sendo e como ensina Figueiredo Dias, a pena abstracta aplicável seria a correspondente ao homicídio tentado, devendo, todavia, "in casu" operar como limite mínimo a pena menos severa prevista para o ilícito típico dominado, que é superior ao mínimo do ilícito dominante (o chamado "efeito de bloqueio"); ou seja, a pena a fixar deveria ser encontrada dentro de uma moldura de 2 a 10 anos e 8 meses de prisão. Neste sentido e sem prejuízo da proibição jurídico-constitucional de dupla valoração (cfr. art. 29.º 5, da Constituição portuguesa), a circunstância de o agente ter criado com a sua atuação perigo para a vida da vítima constituirá factor de agravação da sanção concreta aplicável. Acontece, porém, que os factos provados não nos permitem duvidar da voluntariedade da desistência do condenado, em termos dessa desistência não dever assumir a relevância excludente que a nossa lei penal lhe atribui (art. 24.º 1, do Código Penal). Efectivamente, o impedimento da consumação dolosa de homicídio é obra do arguido, tendo sido este a desencadear o processo causal que culmina na preservação da vida da vítima. Por outro lado, também nos parece que a matéria de facto apurada confirma a verificação das circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade da ofensa à integridade físicada praticada pelo agente: 1) a recusa de ajuda por parte da ofendida traduz-se, objetivamente, numa contrariedade a que corresponde uma reacção, manifestamente, excessiva do arguido, que age, assim, sob incompreensível emoção violenta (irracionalmente); 2) estando a vítima de costas e dobrada sobre si mesma, cuidando das unhas dos pés, facilmente se conclui que não esperaria a sobredita reacção, que se configura, pois, como um ataque traiçoeiro. Que tanto é dizer que o agente, não apenas actua por "motivo fútil", como se revela, também, "insidioso" na realização dessa sua acção desarrazoada. Posto o que afastada a punibilidade pelo crime de homicídio, na forma tentada, mas considerada, factualmente, provada a ofensa à integridade física grave qualificada, restam-nos apenas duas infracções criminais, a saber: "ofensa à integridade física grave" (art. 144.º, al. d., Código Penal) e "ofensa à integridade física qualificada" (art. 145.º 1, al. b. e 2, Código Penal). Há, porém, entre os respectivos tipos legais uma relação de especialidade, de tal sorte que à concreta situação da vida só é aplicável a "lex specialis", em conformidade com o brocardo jurídico segundo o qual "lex specialis derogat legi generali": ou seja, a norma juspenal sob a epígrafe "ofensa à integridade física qualificada". Chegados aqui e tendo em conta a pena abstracta prevista de 3 a 12 anos de prisão, divergimos da apreciação feita pelo tribunal "ad quem", quando sustenta: "Na verdade, a desistência livre e profícua do arguido, da tentativa de homicídio, foi tomada em conta para efeito de não punibilidade, e por razões de política criminal estrita. O arrependimento ativo ainda não foi valorado ao nível do grau de culpa ou da ilicitude com qualquer repercussão na medida da pena" (C - APRECIAÇÃO / II - Medida da pena, ponto c., "in fine"). Muito pelo contrário, a desistência voluntária esgota toda a sua relevância axiológico-normativa na exclusão da punibilidade do homicídio tentado, sendo, agora, especialmente significativo o grau elevado de ilicitude e culpa que se manifesta na prática de um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, que é apenas mitigado pelas condições de primariedade do réu e a sua conduta anterior ao facto. Destarte e em conclusão, julgamos adequada a pena de prisão de 9 anos fixada pelo tribunal de 1.ª instância, desde logo e decisivamente porque entendemos - ao contrário do STJ - que as necessidades de prevenção especial se mostram prementes.
O Direito que conta é aquele que os tribunais aplicam às situações da vida submetidas à sua apreciação e decisão. Que tanto é dizer que decisivo - verdadeiramente, decisivo - são os factos que, no entender desses mesmos órgãos judiciais e conforme a prova produzida, se mostram, juridicamente, relevantes em função da especial disciplina legal que convocam. Tratando-se de o direito penal à prova apresentada pela acusação pública soma-se a própria investigação material que o tribunal realiza ex officio. Assim, a aplicação de o direito exige e pressupõe uma suficiente dilucidação da questão-de-facto, condição esta que se revela, particularmente, decisiva quando está em causa um normativo legal que coenvolve consequências jurídicas, seriamente, gravosas para o condenado, como é a privação da liberdade.
Todavia, são relativamente frequentes os casos em que, extravasando os limites naturais da livre convicção e socorrendo-se em excesso das regras da experiência, se avalia e decide para além ou até contra o prescrito na lei penal, violando, assim, um ditame que desde a época da Ilustração constitui a fonte primeira de legitimidade da intervenção do ius puniendi: o princípio da legalidade criminal.
Por certo, que há exceções que não deixaremos de anotar e sublinhar nesta tarefa que nos propomos e vos oferecemos de análise detalhada e atualizada das decisões dos nossos tribunais superiores em matéria penal. Não esquecendo, também, que às eventuais insuficiências ou dificuldades probatórias que os acórdãos evidenciam e podem traduzir-se numa menos acertada resolução jurídica das situações sub judicio acrescerá sempre a incontornável subjetividade da nossa apreciação, aspeto este último que muito se beneficiará caso seja possível contar com a vossa amável e pronta colaboração crítica. Neste sentido, vai, igualmente, o nosso apelo e expectativa. Mãos à obra, portanto!